Quando nos referimos aos pobres estamos utilizando a mesma compreensão
que a Bíblia fala sobre o assunto, ou reproduzimos o que aprendemos num
evangelho já contaminado com valores mundanos?
A questão dos pobres é um tema central
na Bíblia e como cristãos é nosso dever conhecer. A missão da igreja é ministrar
aos pobres, pois o Reino de Deus pertence a eles, segundo Jesus afirmou em
Lucas 6:20. Quando perguntado se ele era o Cristo que haveria de vir, ele respondeu
que o evangelho estava sendo proclamado entre os pobres. E isso era uma prova
de que ele era o Cristo. Este texto é continuidade do anterior (clique aqui), quando comecei
a discorrer sobre o tema e aqui darei sequência, visando aperfeiçoar aqueles
que fazem parte do Corpo de Cristo, para o bom combate.
Compreender esse tema e sua relação
com a nossa missão como cristãos e como igreja não é apenas importante, mas é
vital, pois esta geração tem experimentado um forte mover de intimidade através
do louvor que tem transformado muitas vidas e manifestado a Graça de Deus a
todos. Porém, se esta geração se deter nesse mover, corre o risco de ouvir do
próprio Deus as palavras ditas através do profeta “Afasta de mim o estrépito
dos teus cânticos, porque não ouvirei as melodias das tuas liras. Antes, corra
o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene” (Amós 5:23-24). Um
louvor e uma adoração desconectados de ações que manifestem a justiça, a graça,
a misericórdia e o amor de Deus, se tornam inaceitáveis para Ele.
Na primeira década deste século, Beth Wood e Maurício Cunha publicaram
um belíssimo livro, infelizmente pouco conhecido no meio evangélico, intitulado
“O Reino entre nós: transformação de comunidade pelo evangelho integral”
(Editora Ultimato) e o texto abaixo é uma reprodução parafraseada ou literal de
trechos do capítulo 2 “O coração de Deus para os pobres”. Vou evitar aspas, mas
fica aqui registrada a referência, recomendo a leitura do livro para quem
deseja se aprofundar sobre o tema.
A tradução bíblica na língua portuguesa para a palavra “pobre” é bastante
limitada. Pois nos escritos originais do hebraico e do grego, pelo menos sete
palavras diferentes se referiam ao mesmo tipo de fenômeno, com perspectivas ou
características diferentes, por isso é importante conhece-las, para saber exatamente
a que se referia o autor bíblico.
No Antigo Testamento os vocábulos “ani”, “ebyon”, “rash”, “micken”, “chelkah”,
“raeb” e “dal, foram traduzidos como “pobre”. Vamos compreender a origem e o
significado original de cada um deles.
“ani”
A palavra mais comum no Velho
Testamento para falar dos pobres é ani,
encontrada 80 vezes. Esses são os que sofrem aflições e opressão. São vítimas
de forças, decisões externas e circunstâncias injustas. Isaías se referiu a
eles em 3:14 “O Senhor entra em juízo contra os anciãos do seu povo e contra os
seus príncipes. Vós sois os que consumistes esta vinha; o que roubastes do ani
está em vossa casa”.
Nesta
passagem podemos ver não só a vitimização do ani, mas também o juízo de Deus contra aqueles que os oprimem. Deus
odeia a injustiça e age contra os opressores, segundo o profeta. Nós temos uma
responsabilidade diante Dele, de identificar as raízes da opressão e de promover
a justiça.
“ebyon”
No propósito original de Deus para
sua criação, não haveria pobres na terra. Foi o pecado e a desobediência que geraram
a pobreza através da escassez e de uma estrutura socioeconômica baseados no
acúmulo, na avareza e na exploração de uns sobre os outros.
Mas ao separar um povo para torna-lo
referência sobre as demais Nações, Deus lhes apresentou um sistema social que
impediria esse tipo de iniquidade no seu meio. Em Levítico 15:4 ele diz “...
para que entre ti não haja ebyon;
pois o Senhor teu Deus te abençoará abundantemente na terra que te dá por
herança, para possuí-la, se apenas ouvires atentamente a voz do Senhor teu Deus para cuidares em cumprir todos estes
mandamentos que hoje te ordeno.”
No entanto, por conhecer o coração pecaminoso
do homem, Deus alerta, no versículo 7, sobre a possibilidade da existência de
pobres na terra: “Quando entre ti houver algum
ebyon de teus irmãos, em alguma das tuas cidades, na tua terra que o Senhor
teu Deus te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás a tua mão a teu
irmão pobre; antes lhe abrirás de todo a tua mão e lhe emprestarás o que lhe
falta, quanto baste para a sua necessidade”.
Por fim,
nos versículos seguintes, Deus alerta a seu povo, que por causa da desobediência
e de não seguirem suas leis, a pobreza se tornaria inevitável, prescrevendo
quais seriam as atitudes corretas a serem adotadas diante do fato: “Livremente
lhe darás, e não seja maligno o teu coração, quando lho deres, pois por isso te
abençoará o Senhor teu Deus em toda a tua obra, e em tudo que empreenderes. Pois nunca deixará de haver ebyon na terra: por isso eu te ordeno:
Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre
na terra.”
Quando Jesus disse em Mateus 26:11
que sempre haveria pobres na terra, ele estava citando esta passagem e não
promovendo um fatalismo a respeito dos pobres. Dentro desta realidade, temos a
responsabilidade de guardar os nossos corações sempre abertos para os ebyon de Deus. Originalmente, ebyon é aquele que não consegue viver
independente dos outros, por causa de sua necessidade, conforme expressa o profeta:
“Levanta o pobre do pó e desde o monturo, exalta o ebyon, para o fazer assentar entre os príncipes, para o fazer
herdar o trono da glória...” (I Samuel 2:8).
“rash”
A palavra rash se refere aos pobres por espoliação. Em outras palavras são os
que se tornaram pobres porque alguém com mais poder tirou o pouco que tinham.
O melhor exemplo se encontra em numa
história contada pelo profeta Natã: “Havia numa cidade dois homens, um rico e
outro rash. Tinha o rico ovelhas e
gado em grande número; mas o rash não
tinha cousa nenhuma, senão uma cordeirinha que comprara e criara, e que em sua
casa crescera, junto com seus filhos; comia do seu bocado e do seu copo bebia;
dormia nos seus braços, e a tinha com filha. Vindo um viajante visitar o homem
rico, não quis ele tomar das suas ovelhas e do gado para dar de comer ao
viajante, mas tomou a cordeirinha do rash
e a preparou para o homem que lhe havia chegado. Então o furor de Davi se
acendeu sobremaneira contra aquele homem, e disse a Natã: Tão certo como vive o
Senhor, o homem que fez isso deve ser morto” (II Samuel 12:1-5).
Deus odeia a injustiça. Ele espera que o povo dEle se coloque ao lado
dos injustiçados. Isto vai requer de nós ações radicais na promoção da justiça,
ações estas que muitas vezes não estamos acostumados a associar à tarefa da
Igreja.
Em nosso meio, encontramos exemplos de rash entre os
povos indígenas, comunidades tradicionais e alguns trabalhadores sem-terra,
entre outros.
“micken”
A grande maioria que ouvimos falar dos pobres ou da pobreza nas igrejas,
é associando-os com a preguiça e a indolência. Porém, não é essa a ênfase dada
pela Palavra de Deus. Micken é a única
palavra hebraica que faz esse tipo de associação e aparece em Provérbios como
um alerta a um tipo de comportamento que não está condizente com os propósitos do
Criador: “Um pouco para dormir, um pouco para encruzar os braços em repouso,
assim sobrevirá a tua pobreza como um ladrão, e a tua micken como um homem armado” Provérbios 24:34. E esse tipo de
comportamento não deve ser utilizado como uma desculpa para fecharmos o nosso
coração, Deus não nos deu essa opção.
“dal”
O dal é o pobre frágil. A raiz
da palavra nos dá o sentido de algo que está pendurado por um fio, em perigo de
cair. Deus sempre fortalece os fracos e vai julgar os que pisam sobre os dal, conforme nos alertou através do
profeta Amós: “...portanto, visto que pisais o dal e dele exigis tributo de trigo, não habitareis nas casa de
pedras lavradas que tendes edificado; nem bebereis do vinho das vidas
desejáveis que tendes plantado” (Amós 5:11).
“raeb”
O raeb é, talvez, o pobre que
temos mais facilidade em servir. O raeb
é o faminto; o que simplesmente não tem o que comer independente do motivo. A
Palavra nos ensina que devemos dar o nosso pão ao raeb: “Sendo, pois, o homem justo e fazendo juízo e justiça, não comendo
carne sacrificada nos altos, nem levantando os olhos para os ídolos da casa de
Israel, não roubando, dando o seu pão ao raeb” (Ezequiel 18: 5-7).
“chelkah”
Chelkah vem de uma raiz que quer dizer “escuro” ou “infeliz”
e se refere ao pobre infeliz ou deprimido na mente. Qual seria o nosso agir com
os que não conseguem enfrentar a vida, os que estão de luto, os lidando com
doença mental? Deus é o defensor do chelkah. Ele se revela como Torre Forte
na vida deles. Devemos nos juntar aos chelkah,
trazendo esperança, força e proteção: “Tu, porém, o tens visto, porque atentas
aos trabalhos e à dor, para que os possas tomar em tuas mãos. A ti se entrega o
chelkah; tu tens sido o defensor do
órfão” (Salmos 10:14).
No Novo Testamento, são poucas as palavras gregas traduzidas como
pobre ou necessitado. Em Lucas 21:2-4 encontramos a viúva “pobre” que Jesus
apresentou como exemplo de generosidade. É interessante notar que três palavras
diferentes são usadas para falar da mesma viúva: “Viu também certa viúva mbuwkah lançar ali duas pequenas moedas; e disse: Verdadeiramente, vos
digo que esta viúva ptokos deu mais
do que todos. Porque todos estes deram como oferta daquilo que lhes sobrava;
esta, porém, da sua husterema deu
tudo o que possuía, todo o seu sustento.”
Nessa passagem podemos notar que as três palavras diferentes no grego se
referem à mesma pessoa, a viúva, em sua pobreza. Isso nos ajuda a constatar que
as palavras gregas não são diferenciadas da mesma forma que as palavras
hebraicas. Vamos estudar a palavra mais comum e mais essencial para o nosso
entendimento do coração de Deus para os pobres.
“ptokos”
O ptokos é o pobre que, encontrando-se apavorado pelas circunstâncias
adversas da vida, procurou um defensor em quem pode confiar e depender, e o achou
em Deus. O ptokos se refere ao necessitado
que não tem segurança em si mesmo e vive dependendo de outros.
A palavra ptokos se refere primeiro ao fisicamente necessitado e se estende
aos necessitados “em espírito”. O ptokos
é principalmente o que não tem comida e as outras necessidades básicas
supridas. A este, Jesus foi enviado para
proclamar as boas novas do evangelho que promete transformar as suas vidas em
todos os níveis, levando-os ao Reino de Deus.
São estes os bem-aventurados; não porque a pobreza faz parte do plano de
Deus, mas porque podem se posicionar na completa dependência de Deus, o que
certamente é o melhor lugar no mundo.
São esses “escondidos” em Deus que têm a oportunidade de entender o
Reino de Deus mais profundamente e então servir de exemplo para nós. São esses
que providenciarão encontros com Jesus nas nossas vidas.
Lemos em Mateus 5:3:
“Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus”. Aí
encontramos os “ptokos em
espírito”. Com a nossa definição é mais
fácil entender essa expressão. Existe a possibilidade de alguns que têm
conseguido suprir suas necessidades básicas pela própria força, entrar neste
relacionamento de dependência em Deus. É mais difícil, mas é possível. É mais
difícil, porque o homem sempre tende à auto-suficiência, a depender da sua
própria força, da sua inteligência, da sabedoria humana. É possível, porque Deus
oferece ao rico esta possibilidade de entender que ao final ele necessita de
Deus para tudo. O pobre, que olhando para a sua situação já percebe sua
necessidade, tem mais facilidade de entrar no Reino de Deus. O homem que “tem
tudo” em termos do mundo sempre terá mais dificuldade em seguir a Jesus, não
porque o convite estendido a ele é diferente, mas porque o coração do homem é
enganoso e tão facilmente nos leva a acreditar que podemos viver na nossa
própria força.
Finalizo esse texto ressaltando a
necessidade e urgência de compreendermos a questão do pobre na Bíblia e esse estudo
linguístico realizado por Bete Wood e Mauricio Cunha nos possibilitou ampliar
largamente a compreensão sobre o tema. Numa próxima oportunidade espero refletir
a justiça de Deus e seus reflexos na vida cristã.
Belém – PA, 09 de novembro de 2018
Fidelis Paixão – advogado, educador,
pastor
fidelispaixao.blogspot.com