Muitos
cristãos utilizam argumento bíblico para afirmar que a pobreza é um fenômeno permanente
na sociedade humana. Mas Jesus teria realmente dito isso ou esse é um
argumento manipulado para considerar natural algo que é resultado do nosso modo
de viver e produzir? Aqui a primeira parte de uma reflexão sobre o tema a
partir dos ensinamentos bíblicos.
Nós brasileiros nos acostumamos com a profunda
desigualdade social existente em nosso país, como se isso fosse assim mesmo,
como se sempre fosse assim e como se não tivesse como acabar com isso. Claro, estamos
entre os três países com maior índice de desigualdade do mundo, onde a
opulência convive lado a lado com a miséria. Desde que nos constituímos como “Nação”,
enraizados num modelo escravagista, convivemos com esse tipo de realidade,
então é compreensível que a visão de mundo das pessoas considere “normal” esse
tipo de realidade. Mas justificar essa realidade utilizando argumentos bíblicos
já é uma postura bastante diferente, pois busca fundamentar espiritualmente esse
tipo de realidade.
Ouvi de um pastor, recentemente, que “os pobres sempre vão existir”, como uma
justificativa para essa desigualdade. Ele se referia a uma frase de Jesus em
João 12:8 quando ele repreendeu Judas Iscariotes que condenava a mulher que
derramava um perfume caro em seus pés, dizendo “Quanto aos pobres, vós sempre os tereis convosco, mas a mim vós nem
sempre tereis.” A maioria dos evangélicos citam essa frase totalmente fora
do contexto, tal qual fez esse pastor. Aliás esse é um grande mal: ler a
Bíblia e interpretar os versículos fora do seu contexto, ignorando a regra de
ouro da hermenêutica, que é entender o texto no seu contexto.
Nesse texto, Jesus estava falando aos seus discípulos
naquele determinado momento, por isso ele diz “a mim vós nem sempre tereis”. Acreditar que Jesus estava dizendo
que sempre teríamos os pobres, seria o mesmo que acreditar que nós não temos
sua presença nos nossos dias, o que não é verdade, uma vez que Ele está
presente em nosso meio através do Espírito Santo.
A questão do pobre é um tema central na Bíblia. A
melhor demonstração disso é que após reunião dos apóstolos para decidir sobre o
ministério de Paulo, chegaram à conclusão que a única recomendação necessária
era que deveriam se lembrar dos pobres (Gálatas 2:10), que Jesus afirmou que o
Reino de Deus pertence aos pobres (Lucas 6:20) e Tiago em 2:5 alertando que
Deus escolheu os que para o mundo são pobres. Jesus chegou ainda a afirmar, em
Mateus 25:31-46) que nós nos encontraríamos com ele quando estivéssemos
ministrando aos pobres.
Infelizmente a Igreja evangélica atual, foi dominada
pela visão anti-bíblica da teologia da prosperidade, pelos valores
materialistas deste século e tem gerado crentes arrivistas, com uma mentalidade
focada no sucesso social e no acúmulo de bens, totalmente o contrário do
evangelho ensinado por Jesus. Em muitos púlpitos estão sendo ministradas
mensagens de auto-ajuda e de crescimento pessoal, ao invés de estar sendo
pregado o evangelho da graça através da renúncia na cruz do calvário.
É desta forma que os cristãos evangélicos atualmente
vão justificando a profunda desigualdade social no Brasil, ignorando ou
criticando as políticas sociais de inclusão, de distribuição de renda e de
fomento a famílias na linha da pobreza, ignorando que os países mais
desenvolvidos do mundo implementaram políticas do tipo “bolsa-família”, “cotas”
e similares, para diminuírem a desigualdade social e criarem uma sociedade do
bem-estar. A ideologia disseminada nas igrejas hoje em dia procede do modelo
neoliberal estadunidense e de sua teologia prostituta, que é a da prosperidade,
com os falsos profetas que um dia serão julgados pelo Altíssimo.
A justiça de Deus, biblicamente revelada, está focada
na promoção do bem, na disseminação de obras de amor, de inclusão, de respeito
aos direitos dos pobres, dos carentes, das viúvas, dos órfãos. Basta ler Isaias
57:5-10, Ezequiel 22:6-12, Oseias 4:6, Amós 2:6-7, 4:1, 5:11-12 e 21-24 (uma
das mais belas palavras proféticas da Bíblia), 8:4-7 (que denuncia o salário
aviltante que é pago ao trabalhador e é defendido hoje por um dos candidatos à
presidência, de que o trabalhador renuncie aos seus direitos através de uma
carteira de trabalho verde-amarela), Zacarias 7:9-12, Jeremias 3:15, 12:1-2 e
Tiago 1:27 e 5:1-6, isso só pra citar algumas passagens que falam sobre o tema
da justiça. Da mesma forma, a paz biblicamente falando está associada a
justiça, não existe paz sem justiça, pois a paz é fruto da justiça, como afirma
Isaías 32:17.
Em um outro texto quero continuar discorrendo sobre o
tema do pobre e da pobreza na Palavra de Deus, para que o Espírito Santo nos
ilumine e conceda sabedoria e graça para enfrentar a deturpação do Evangelho e
nos leve de volta aos princípios da palavra profética, tão necessária nos
tempos obscuros que estamos vivendo, pois a Bíblia nos ensina que a justiça não
“cai do céu”, que ela é feita, é construída, é exercitada por nós em nosso
dia-a-dia, através de nossas ações, das políticas públicas, dos programas e
projetos que realizamos iluminados pelo Espírito da Graça e da Sabedoria que
Deus nos concedeu.
Belém, outubro de 2018
Fidelis Paixão
Advogado, educador e pastor.
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