sexta-feira, 24 de outubro de 2008

DEPRESSÃO MUNDIAL, UMA VISÃO DE LONGO PRAZO

Estamos nos movendo em direção a um mundo protecionista. Estamos nos movendo para um papel muito maior do governo na produção. Mesmo os EUA e a Grã Bretanha estão nacionalizando parcialmente os bancos e as grandes empresas moribundas. Nos dirigimos a uma distribuição conduzida pelo governo, que pode assumir modos social-democratas à centro-esquerda ou formas autoritárias de extrema direita.


Immanuel Wallerstein - La Jornada

A depressão já começou. Alguns jornalistas, um tanto constrangidos, seguem perguntando aos economistas se talvez não estejamos só entrando numa mera recessão. Não creia neles nem por um minuto. Já estamos no começo de uma depressão mundial de grande envergadura com desemprego maciço em quase todas as partes. Pode assumir a forma de uma deflação nominal clássica, com todas as suas conseqüências para as pessoas comuns. É um pouco menos provável que assuma a forma de uma inflação galopante, que é somente uma outra forma de derrubar valores, inclusive pior para as pessoas comuns.

É claro que todo mundo se pergunta o que disparou essa depressão. Serão os derivativos, que Warren Buffett chama de "armas financeiras de destruição em massa"? Ou são, por acaso, as hipotecas subprime? Ou os especuladores do petróleo? Julgar culpas não tem importância real. Isso é concentrar-se na poeira, como dizia Fernand Braudel, dos eventos de curta duração. Se quisermos entender o que está ocorrendo necessitamos lançar um olhar amplo para outras temporalidades, que são muito mais reveladoras. Um é o dos vai-e-vens cíclicos de média duração. O outro é aquele das tendências estruturais de longa duração.

A economia-mundo capitalista teve, durante vários séculos, pelo menos duas formas de vai-e-vens cíclicos. Uns são os chamados ciclos de Kondratieff, que historicamente teriam uma duração de 50-60 anos. E outros são os ciclos hegemônicos, que são muito mais longos.

Em termos de ciclos hegemônicos, os EUA foram um adversário dessa hegemonia nos idos de 1873; conseguiu sua hegemonia depois de 1945 e vem declinando desde os anos 70. As loucuras de George W. Bush transformaram esse declínio lento em precipitado. E agora já estamos longe de qualquer retomada da hegemonia estadunidense. Entramos, como acontece normalmente, num mundo multipolar. Os EUA permanecem como potência forte, talvez a mais forte, mas continuará declinando em relação a outras potências, nas próximas décadas. Não há muito o que alguém possa fazer para mudar isso.

Os ciclos de Kondratieff têm uma temporalidade diferente. O mundo saiu da última fase B do ciclo Kondratieff em 1945, e então o retorno mais forte à fase A vem ocorrendo, na história do sistema-mundo moderno. Chegou ao seu clímax por volta de 1967-1973, e começou o seu descenso. Esta fase B foi muito mais longa que as fases B anteriores e seguimos nela.

As características de uma fase B de Kondratieff são bem conhecidas e coincidem com o que a economia-mundo vem experimentado desde os anos 70. As taxas de lucro nas atividades produtivas baixam, especialmente naqueles tipos de produção que tenham sido mais rentáveis. Em conseqüência, os capitalistas que desejem níveis de lucro realmente altos se inclinam para o setor financeiro, e se envolvem no que basicamente é especulação. Para que as atividades produtivas não se tornem tão pouco rentáveis, têm de mudar-se das zonas centrais para outras partes do sistema-mundo, negociando custos menores de transação com mão-de-obra mais barata. É por isso que começam a desaparecer os empregos em Detroit, Essen e Nagoya, e a se expandirem nas fábricas da China, da Índia e do Brasil.

Quanto às bolhas especulativas, algumas pessoas sempre fazem muito dinheiro com elas. Só que cedo ou tarde as bolhas especulativas sempre arrebentam. Se se pergunta por que essa fase B do ciclo Kondratieff durou tanto, é porque os poderes existentes - o Departamento do Tesouro e o Federal Reserve (Banco Central) norte-americanos, o FMI e seus colaboradores na Europa ocidental e Japão - intervieram regularmente no mercado e de maneira importante para ajudar a economia-mundo - em 1987, quando a bolsa despencou; em 1989, no colapso do crédito e das poupanças nos EUA; em 1997, com a queda das bolsas na Ásia oriental; em 1998, pelas mãos dos chamados Long Term Capital Management, um fundo Hedge de capitais de longo prazo; em 2001-2002, com Enron. Com base no que aprenderam com as lições das fases B anteriores de Kondratieff, os poderes existentes pensaram que podiam vencer o sistema. Mas há limites intrínsecos para fazer isto. E agora chegamos neles, como Henry Paulson e Ben Bernanke o estão aprendendo para sua vergonha e talvez assombro. Desta vez não será tão fácil, provavelmente será impossível, evitar o pior.

No passado, uma vez que a depressão dava rédea solta a seus estragos, a economia-mundo se levantava com base nas inovações que podiam ser quase monopolizadas por um tempo. Assim, quando se diz que o mercado financeiro voltará a levantar-se, é isso o que se pensa que ocorrerá, agora como no passado, depois de as populações do mundo sentirem todo o estrago causado. E talvez em alguns poucos anos assim seja.

Há, contudo, algo novo que pode interferir nesse belo padrão cíclico que tem sustentado o sistema capitalista por uns 500 anos. As tendências estruturais podem interferir nas tendências cíclicas. Os traços estruturais básicos do capitalismo como sistema-mundo operam mediante certas regras que podem ser traçadas num gráfico como um equilíbrio em movimento ascendente. O problema, como acontece com todos os equilíbrios estruturais de todos os sistemas, é que com o tempo as curvas se movem para muito além do equilíbrio e se torna impossível regressar ao ponto anterior.

O que se fez para que o sistema tenha se tornado tão distante do equilíbrio? Grosso modo, o que ocorre é que, ao longo de 500 anos, os três custos básicos da produção capitalista - pessoal, insumos e impostos - têm subido constantemente no percentual dos preços possíveis de venda, de tal modo que hoje se tornou impossível obter grandes lucros da produção quase monopolizada que sempre foi a base da acumulação capitalista significativa. Não é porque o capitalismo esteja falhando no que faz melhor. É precisamente porque o está fazendo tão bem que finalmente minou a base para acumulações futuras.

Quando chegamos a esse ponto o sistema se bifurca (na linguagem dos estudos de alta complexidade). As conseqüências imediatas são uma turbulência altamente caótica, que nosso sistema-mundo está experimentando neste momento e que seguirá experimentando por uns 20-50 anos. Como todos apostam na direção que pensam ser a mais imediatamente adequada para sua perspectiva, emergirá uma ordem de caos numa das veredas dos muitos caminhos alternativos diferentes.

Podemos assegurar com confiança que o presente sistema não sobreviverá. O que não podemos predizer é qual nova ordem será escolhida para substituí-lo, porque esta será o resultado de uma infinidade de pressões individuais. Mas cedo ou tarde um novo sistema se instalará. Não será um sistema capitalista, mas pode ser algo muito pior (ainda mais polarizado e hierárquico) ou algo muito melhor (relativamente democrático e relativamente igualitário) que o atual sistema. Decidir um novo sistema é a luta política mundial mais importante de nossos tempos.

E, quanto às perspectivas imediatas de curta duração, ad interim, é claro o que ocorre em todas as partes. Estamos nos movendo em direção a um mundo protecionista (esqueça-se da chamada globalização). Estamos nos movendo para um papel muito maior do governo na produção. Mesmo os EUA e a Grã Bretanha estão nacionalizando parcialmente os bancos e as grandes empresas moribundas. Nos dirigimos a uma distribuição populista conduzida pelo governo, que pode assumir modos social-democratas à centro-esquerda ou formas autoritárias de extrema direita. E nos movemos em direção a conflitos sociais agudos no interior de alguns estados, à medida que todo o passa a competir por uma fatia menor do bolo. No curto prazo, não é, de modo algum, um panorama agradável.

Immanuel Wallerstein, sociólogo norte-americano, um dos teóricos da Teoria do Sistema Mundial (de onde vem a expressão Sistema-Mundo) e pesquisador sênior da Universidade Yale. É autor de Sistema Mundial Moderno, de 1974.

Tradução: Katarina Peixoto

sábado, 27 de setembro de 2008

CONSTRUINDO A “Matriz FOFA” COMO PARTE DO PLANEJAMENTO ESTRATEGICO

A “Matriz FOFA” é um instrumento metodológico basico e popular para análise de projetos, organizações ou de ator social que se propõe a planejar, diagnosticando sua situação e preparando propostas de ações estratégicas.

Este instrumento tem sido utilizado com êxito por organizações de pequeno porte (associações, sindicatos, igrejas etc), projetos de médio alcance, movimentos sociais diversos e agências multilaterais.

Recomenda-se que seja conduzido por um moderador com experiência em moderação de atividades grupais e pode ser utilizado em grupos de vários tamanhos em diferentes situações de análise e decisão.

Também é recomendável, quando possível, que seja utilizado como ferramenta num processo de planejamento estratégico situacional mais amplo, uma vez que pela sua simplicidade, não permite uma análise profunda dos problemas detectados pelo ator que planeja, gerando uma matriz situacional superficial e uma matriz normativa de ações a serem executadas pelo ator que planeja.

A vantagem desta ferramenta está em sua simplicidade para gerar critérios que norteiam a tomada de decisões e sistematizam o planejamento de ações.

A “Matriz FOFA” é realizada em dois momentos distintos e subseqüentes. No primeiro momento analisando a situação e no segundo momento gerando propostas de intervenção sobre os fatores identificados.

1º Passo: Deve estar claro quem é o ator que planeja, ou o projeto que está sendo analisado, seus objetivos e sua missão.

2º Passo: Identificar os fatores positivos e negativos que interferem nos objetivos ou na missão do ator que planeja, classificando-os em internos e externos. Essa identificação deve ser catalogada numa matriz 4 por 4, de modo que seja visualizada facilmente por quem está planejando.

Os fatores internos são classificados como Fortalezas e Fraquezas. São aqueles fatores controláveis pelo ator que planeja, estando sob sua responsabilidade.

Os fatores externos são classificados como Oportunidades e Ameaças. São aqueles decorrentes do ambiente ou de outros atores sociais, não estando sob responsabilidade direta - ou sob governabilidade - do ator que planeja.

É muito importante compreender a diferença entre fatores internos e externos, pois todo diagnóstico objetiva um bom planejamento, e fatores internos podem ser fortalecidos ou eliminados e fatores externos podem ser aproveitados ou evitados.

Concluída esse momento inicial de análise da situação, deve-se então preparar o Plano de Ação com as propostas de ações que incidirão sobre os fatores identificados.

3º Passo: Preparar uma matriz de ações a serem empreendidas, considerando-se que:
As FORTALEZAS devem ser fortalecidas, usadas, maximizadas.
As OPORTUNIDADES devem ser aproveitadas.
As FRAQUEZAS devem ser eliminadas ou compensadas.
As AMEAÇAS devem ser evitadas ou seus efeitos devem ser minimizados.

4º Passo: Preparar um organograma/cronograma definindo prazos e responsáveis pelas ações identificadas na matriz de ação, num sistema de gerenciamento do Plano de ações.
Por ultimo e, se for o caso, definir um sistema basico de organização do grupo.

Textos consultados e utilizados:
- Santos, Glória Lúcia. “Mobilização Social em Comunidades”, Curitiba: UNILIVRE, 2002.
- Krüger, Hans. “Planejamento, acompanhamento e avaliação em projetos de gestão ambiental”, Manaus: Agência de Cooperação Técnica, 2002.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

A Arte de Planejar através do Planejamento Estratégico Situacional

1. INTRODUÇÃO

A palavra planejamento faz parte do vocabulário e do dia-a-dia da grande maioria das pessoas. Desde a dona de casa que planeja mensalmente a compra no supermercado e semanalmente a compra na panificadora ou na feira, passando pela organização não-governamental que se desespera com a baixa produtividade de seus esforços, até as equipes econômicas que dão as diretrizes para unificação de blocos econômicos, como o Mercado Comum Europeu ou a ALCA.

Contudo, cada uma dessas pessoas ou organizações tem uma idéia diferente do seja planejamento. Mas apesar dessas diferenças, algumas coisas elas tem em comum: a crença de que planejar é, antes de mais nada, uma técnica. Alguns acham que planejamento é pura e simplesmente uma técnica. Nada mais falso e equivocado, pois planejamento é, antes de tudo, um estado de espírito!

Não um estado de espírito contemplativo. Pelo contrário, a visão do planejamento como sendo essencialmente uma técnica é que se assemelha a contemplação, pois se pensa no planejamento como o ato de escrever no papel um conjunto de boas intenções e de meios que, hipoteticamente, permitirão atingi-las e, pronto, está feito o planejamento. Tudo dentro de uma “técnica”, é claro! Mas planejar exige um estado de espírito ativo e interativo.

O planejamento é uma reflexão que precede e comanda a ação. É a mediação entre o conhecimento e a ação, entre a ação e o conhecimento. O planejamento mexe com questões que nos são muito caras.

Mexe com a verdade. A nossa verdade a respeito de uma situação: - Quais são os meus problemas? - Como posso explicá-los? - Tenho, verdadeiramente, interesse em resolvê-los?

Mexe com o desejo: - O que eu quero no lugar dos meus problemas atuais? - O paraíso? - Alguns problemas menores que os atuais? - Sei realmente o que quero?

Mexe com o poder: - Posso chegar onde quero? - Tenho os recursos necessários? - Quem são meus aliados e meus oponentes? - Quais suas forças? - Como vou acumular poder e como vou usá-lo?

E, por fim, mexe com a vontade: a vontade transforma a reflexão em ação e a ação em reflexão! A vontade é a vida do planejamento. E se essa vontade não é abstrata, é concreta, o ator que planeja tratará, antes de tudo, de criar uma forma de auto-organização que lhe permita fazer essa reflexão sistemática sobre sua ação, a partir da própria ação.

Mexendo com questões tão importantes, muitas delas mal resolvidas, não é de estranhar que tenhamos muita dificuldade em planejar. Ainda mais se acharmos que planejamento é, essencialmente, uma técnica.

Se tivermos a compreensão correta do significado do planejamento, ai sim, podemos pensar em uma técnica, ou melhor, em um método que nos permita articular num todo coerente a nossa reflexão sobre essas questões.

Um método e algumas técnicas que permitam, em termos de planejamento, a construção de um ator coletivo, dotado de capacidade de reflexão, capaz de usar essa reflexão para orientar suas ações na direção de sua utopia, na direção de sua liberdade. Nesse sentido, planejar é se libertar, ser livre!


2. OS DESDOBRAMENTOS METODOLÓGICOS DO PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO SITUACIONAL

Diversos autores pensaram métodos e técnicas diferentes para organizar sua liberdade através de um plano. Entre eles, vamos conhecer neste momento o Planejamento Estratégico Situacional.

O Planejamento Estrategico Situacional, tambem conhecido como PES, foi criado por Carlos Matus, presidente do Banco Central, assessor presidencial e ministro da fazenda no governo socialista do chileno Salvador Allende. Durante seu exilio, apos o golpe militar, Matus radicou-se na Venezuela, onde criou a Fundacao Altadir, e dedicou-se a analisar por que as experiencias de planejamento sao, via de regra, tao conturbadas e, as vezes, mal sucedidas.

Na sua obra Adeus, Senhor Presidente (lançado no Brasil pela Litteris Editora) o autor sintetiza sua vivência de planejador e teórico, levado pelas circunstâncias a planejar e decidir sob a pressão dos fatos políticos, descobrindo, na dolorosa experiência, a necessidade irremediável de reconciliação do técnico com o político.


Para Matus, o planejamento é um processo técnico-político resultante de um jogo de atores em interação, conflito, cooperação e alianças, os quais têm suas próprias estratégias e sua particular visão dos problemas e da realidade. Como tal, é indeterminado e constitui um processo aberto, em que o futuro está para ser construído pela interação dos atores. Sua crítica ao plano normativo consiste, precisamente, nesta concepção aberta do planejamento que não pode ser reduzido a um documento excessivamente estático para a acompanhar a dinâmica do jogo social, no qual os atores exercitam sua liberdade e disputam suas estratégias e objetivos. O planejamento é, deste modo, uma atividade de cunho nitidamente político, da mesma forma que a política é um jogo e conflito de estratégias que constituem e requerem, cada vez mais, um esforço de planejamento com os recursos técnicos disponíveis, organizando informações, hierarquizando e ordenando as ações, orientando as decisões. E como o ator que planeja é parte do processo social e político e está por este contido, ele é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do planejamento.

Planejamento Estratégico Situacional - PES, Método Altadir de Planejamento Popular - MAPP e Planejamento Orientado por Objetivo - ZOPP são componentes de um sistema integral de macro a micro planejamento. Essa concepção, desenvolvida por Matus, compreende três diferentes níveis:


1º Nível - PES - que é um planejamento de alto nível para macro-organizações, como por exemplo, Estados, Prefeituras de grande porte, grandes empresas ou multinacionais;


2º Nível - ZOPP (sigla alemã que significa ziel orientierte projekt planung), que é um método de planejamento para projetos orientados por objetivos, de grande utilidade em níveis intermediários de organizações, tais como Secretarias de Estado, Prefeituras, Departamentos Acadêmicos ou mesmo Intercâmbios de Organizações Internacionais (é adotado, por exemplo, pelo Ministério de Cooperação Econômica da Alemanha);


3º Nível - MAPP, estruturado para planejamento em bases populares (associações, partidos políticos, setores governamentais comunitários etc), e para efetivar as propostas de democratização e participação em sua implementação. Todos os três níveis utilizam categorias, conceitos e concepções equivalentes, diferenciando-se apenas na complexidade.


O Método Altadir de Planejamento Popular - MAPP - é um método participativo que respeita a visão que o ator tem dos problemas que o afetam e cria um compromisso muito forte do ator com a análise dos problemas e as soluções que ele mesmo propõe. Trabalha com técnicas de discussão em grupo, análise dos problemas e suas causas, descrição dos problemas, identificação dos atores relevantes para cada problema, seleciona as operações para enfrentá-las com a disponibilidade dos recursos necessários, identificação dos argumentos, condicionantes e apostas que podem influir no êxito do plano e a previsão das surpresas que podem afetar a validade e eficácia do plano.


3. FUNDAMENTOS DO PLANEJAMENTO ESTRATEGICO SITUACIONAL


O PES entende o planejamento como o cálculo que precede e preside a ação. Quatro momentos básicos regem o planejamento situacional. São chamados de momentos e não de etapas porque são instâncias que se repetem constantemente, em ordem variável, no processo do planejamento. São esses momentos:


O texto a seguir é uma síntese do pensamento de Carlos Matus, expressado em seus textos "Planejamento, Liberdade e Conflito" e "O Plano como aposta".


1. O Momento Explicativo: quando o ator que planeja está permanentemente indagando sobre as oportunidades e problemas que enfrenta, tentando explicar as causas que os geram.


2. O Momento Normativo: aquele no qual o ator que planeja esboça como deve ser a realidade ou a situação, e que o planejamento tradicional confundiu com a totalidade do planejamento, terminando por identificar plano com esboço; para o planejamento situacional, o normativo é apenas um momento do processo de planejamento, aquele momento de esboço que se move no âmbito do “dever ser”.


3. O Momento Estratégico: no qual o ator se pergunta como tornar viável seu esboço normativo, que obstáculos deve vencer e como pode vencê-los para que seu esboço de “dever ser” se entranhe na realidade como uma força efetiva de mudança em direção à situação eleita como objetivo, ou seja, como o esboço que está no papel ou em cabeças pensantes pode converter-se em movimento real da situação. Aqui aparecerão obstáculos políticos, econômicos, culturais, organizacionais, cognitivos, legais etc. Porque o problema político e todos os demais problemas não estão resolvidos de antemão, de maneira que o planejador possa dedicar-se exclusivamente ao problema econômico. Quem planeja não só deve esboçar as coisas como elas precisam ser, mas também deve fazer um cálculo de como driblar os obstáculos que se opõem ao cumprimento desse esboço. Aqui o planejamento situacional começa a se diferenciar fortemente do planejamento tradicional que, normalmente, esgota sua tarefa no momento do esboço. O mesmo esboço que, posteriormente, o técnico entregará àquele que decide e àquele que executa o plano, a fim de materializá-lo, como se a “decisão” e a “execução” não fossem problemas recorrentes de quem planeja. Tudo isso também leva à revisão dos conceitos de planejamento e planejador, porque aquele que planeja é que realmente comanda um processo. O planejamento refere-se principalmente ao processo de governo (com minúscula), não exclusivamente ao governo de um Estado, e sim, mais além, por exemplo, ao governo de um ambulatório, ou de uma diretoria de um ministério, ou de um sindicato, ou de uma empresa. O planejamento refere-se ao processo de governo e quem planeja é quem governa.

Quem realmente planeja é quem tem a capacidade de tomar decisões. Por isso o planejamento situacional dá ênfase ao momento da ação e usa a exploração sobre o futuro como um recurso para dar racionalidade à ação, mas não se detém na mera exploração do futuro, nem separa em partes o planejamento da gerência na ação. O planejamento não é um mero cálculo que precede e preside a ação. Conseqüentemente, cálculo e ação são inseparáveis e recorrentes. Esta é outra limitação do planejamento tradicional, que traçou limites artificiais entre quem planeja e quem executa.

O momento estratégico refere-se, então, ao problema de driblar os obstáculos que os diferentes recursos escassos, que não são apenas econômicos, nos apresentam. Às vezes esses problemas podem ser da ordem de conhecimentos, às vezes de poder político, de disfuncionalidade de valores etc. Há muitos recursos escassos que limitam o cumprimento do plano. Por isso, o conceito de planejamento tem de exceder o meramente econômico e abarcar situações integrais.


4. O Momento tático-operacional: o quarto e último momento do planejamento situacional e, também, o momento decisivo. Isso porque os outros três momentos do planejamento têm uma única utilidade: constituir-se num cálculo para a ação, num cálculo que precede e preside a ação. Não obstante, é indispensável calcular, explorando além do presente para dar racionalidade às nossas decisões de hoje. Entretanto, no final, julgaremos, o planejamento pela forma como este cálculo é capaz de alterar, conduzir e orientar as ações presentes. Este cálculo é o centro do momento tático-operacional e tem por objetivo orientar cada passo que damos no dia-a-dia e avaliá-lo em relação à situação-objetivo, não só para revisá-la como guia, que seguirá precedendo e presidindo nossos passos seguintes. A realidade se constrói no presente. Os resultados que obtemos na realidade são um produto desses passos que damos no dia-a-dia; os planos que simplesmente pensamos ou esboçamos não pesam, pesam somente aqueles que precedem e presidem nossos passos.


4. UM DECÁLOGO PARA O PLANEJAMENTO

Primeira consideração: Planeja quem governa.

Para nos situarmos na concepção do planejamento estratégico, é necessário redefinir o sentido das palavras “planejamento” e “planejador”; o planejamento tem de ser algo mais amplo, mais abrangente, que o mero planejamento de um âmbito específico, como o econômico. Por sua vez, planeja quem governa, quem tem a capacidade de decidir e a responsabilidade de conduzir. Ainda que o planejador planeje num âmbito restrito, estará limitado por múltiplos recursos escassos que atravessam as diferentes dimensões da realidade. E terá de lidar com tais restrições. Porém, não poderá fazê-lo bem se não ampliar o conceito de planejamento com o qual opera. Muitos planejadores têm aplicado intuitivamente essa noção ampliada de planejamento em suas atividades, mesmo em âmbitos restritos.


Segunda consideração: O planejamento refere-se ao presente.

É necessário ressaltar, reafirmar, que o planejamento não se refere a um projeto sobre o futuro. Tudo o que fazemos para explorar o futuro no prazo de um ano, cinco anos, ou mesmo quinze anos, não tem nenhuma importância se tais explorações não orientam a ação atual. Tudo o que o planejamento faz para simular o futuro é muito útil, mas é apenas um produto intermediário. O produto final é a decisão que deve ser tomada hoje. Porém, a decisão atual não pode ser racional se não transcende o presente, porque o que ocorre depois, ou amanhã, é o que dá eficácia à minha decisão.


O problema dos prazos no planejamento tem, então, sua origem teórica na impossibilidade de hoje tomar uma decisão racional sem explorar o futuro. Essa exploração do futuro é imprescindível, mas não é o coração do plano. O coração do plano é o intento de governar um processo , e só se governa um processo por meio da ação. Em conseqüência, a planificação refere-se ao presente, e isto lhe dá um grande sentido prático, liberando-o do sentido livresco que teve até agora. Se o planejamento deve ser útil como cálculo que precede e preside a ação no dia-a-dia, tal cálculo não concede tempo para se escrever dezoito volumes. Assim, o planejamento nem se refere ao futuro como coisa essencial, nem é um projeto. O planejamento tradicional confunde planejamento com projeto, com esboço.


Esboçar coerentemente como as coisas devem ser é um problema de alta complexidade teórica, e do dever-ser da meta devemos “deduzir” o dever-ser dos meios. Assim, numa espécie de lógica dedutiva, busco a coerência entre o dever ser dos objetivos e o dever ser dos meios e instrumentos mais precisos, capazes de alcançar a meta. Mas esta lógica retrocasual é apenas um aspecto do processo de planejamento. Efetivamente, salvo para um ator que tenha absoluto poder, cumprir a meta esboçada é o começo de outro problema de planejamento. Porque tal meta sofrerá tropeços, terá opositores, estará sujeita a restrições e só será consistente com a realidade inicial que a fundamenta. Porém, esta situação inicial está permanentemente mudando. Conseqüentemente, devo revisar essa meta para que seja realista, e não uma mera aspiração ideal, inalcançável dentro das restrições presentes ou ultrapassada pelos fatos.


Então, planejar é apenas em parte esboçar. O esboço é parte do momento normativo, justamente um dos quatro momentos do planejamento situacional.


Terceira consideração: O planejamento exige um cálculo situacional.

O planejamento supõe um cálculo complexo, e esse cálculo é afetado por múltiplos recursos escassos que cruzam muitas dimensões da realidade. A equipe de uma unidade de saúde, por exemplo, não enfrenta apenas de saúde, mas entre outros, problemas organizativos, financeiros, políticos etc e, conseqüentemente, para eles, planejamento é algo muitíssimo mais complexo do que dominar as técnicas de saúde.

O planejamento refere-se a um cálculo situacional complexo, que cruza os quatro momentos do planejamento estratégico. Em conseqüência, o planejamento é, necessariamente, um cálculo situacional complexo, e este deve estar estritamente ligado à ação no presente, ou não é planejamento. Pode ser literatura sobre o futuro, pode ser futurologia e, como normalmente fazem-se os planos tradicionais com muito atraso, pode ser história, mas não é planejamento. Para que seja plano, e para que falemos de planejamento, este cálculo situacional complexo tem de preceder e presidir a ação concreta.


Quarta consideração: O planejamento refere-se a oportunidades e problemas reais.

As categorias de oportunidade e problema são essenciais na planificação situacional. Os problemas reais não se referem a relações abstratas que intelectualizamos como síntese global. Por exemplo, se nos parece que o setor agrícola cresce pouco, esse não é o problema concreto real, essa é a formalização sintética de múltiplas oportunidades e problemas reais que estão no âmbito agrícola, e que nos é útil como forma indicativa de uma abstração significativa. Porém, o planejador não pode atacar essa síntese formal. Pode apenas atuar sobre a realidade dos fenômenos. De maneira que, se o planejamento não desce às oportunidades e problemas concretos, ou, melhor dizendo, se não sobe a eles, porque isto é difícil, tampouco é planejamento.


O dever do plano é que todo mundo o entenda, mesmo quem não é perito em planejamento, e que todo mundo possa opinar sobre esse plano, pois é legítimo que todos opinem sobre os problemas reais que os afetam e sobre as soluções mais eficazes. Assim, é essencial ao planejamento a categoria de ‘problema’. Isto obriga o planejador a dedicar uma boa dose de preocupação teórico-metodológica ao estabelecimento de instruções práticas sobre como se determinam os problemas, como se analisam problemas, como se explicam problemas, o que são problemas verdadeiros e problemas falsos, e como os diferentes atores sociais valorizam os problemas. Porque o que é problema para um pode ser oportunidade para outro.

Assim, certamente nos distanciamos da categoria de “diagnóstico”, pois o diagnóstico foi difundido como a busca de verdade ‘una’ única e científica, transplantada da ciência médica para o planejamento. Assim, é muito importante, do ponto de vista do planejamento situacional, que eu explique a realidade não só como a vejo, mas que me coloque na auto-referência do outro e tente compreender sua explicação, distinta da minha. Não me interessa, neste momento, se creio que sua explicação é má, é extremista, é direitista ou ineficaz. Não interessam os qualificativos que eu possa lhe atribuir. O que interessa é que sua explicação é o que o move a ter um plano diferente do meu, e o move à ação que me obstaculiza. Minha obrigação, em termos de planejamento situacional, é entender sua explicação e incluí-la na minha explicação da realidade. A explicação do ‘outro’ é parte da realidade que devo explicar, é parte da situação.


Quinta consideração: O planejamento é inseparável da gerência.

Para que o planejamento funcione, é necessário que ele responda às necessidades de quem gerencia. O planejamento operacional (na base) e o planejamento diretivo (de síntese global), são espaços distintos de planos, relacionados pelos seguintes princípios: a) primeiro, de que o planejamento diretivo não pode ter sentido sem o planejamento operacional; b) segundo, o planejamento operacional geralmente se realiza sob “fenoestruturas” constantes.


Sexta consideração: O planejamento situacional é, por definição, necessariamente político.

Não se pode ignorar o problema político, uma vez que um dos recursos que, se restringido, restringe nossas capacidades de produção social de ações é o poder. Também pode ser os valores, as culturas internalizadas, nos atores desses processos, os conhecimentos etc. No planejamento situacional, o político não é um dado externo nem um marco restritivo que vem de fora. O planejamento situacional internaliza as questões políticas como variáveis, e trata de operar com elas. Isso supõe a intenção de sistematizar o planejamento político no que ele é sistematizável, porque, evidentemente, a política tem uma forte dose de arte, de experiência, de intuição. Mas, de toda forma, há muitos aspectos sistematizáveis do planejamento político, assim como nem tudo é sistematizável no planejamento econômico. O importante é reconhecer que, se em alguma medida, não sistematizamos o planejamento político, o planejamento não pode ser totalizante, não pode ser situacional e não pode identificar-se com o processo de governo. E, se o planejamento não é situacional, é quase impossível impedir que o cálculo político e o cálculo econômico sigam caminhos paralelos, com o conseqüente disperdício de oportunidades econômicas abertas no processo político ou de oportunidades políticas abertas no processo econômico.


Sétima consideração: O planejamento não se refere nunca a adivinhar o futuro.

A adivinhação não é trabalho de planejadores. Ao contrário, o planejamento deve trabalhar considerando a incerteza de possíveis ‘variantes’ que escapam à nossa verdade e poder. A forma de reconhecer uma limitação técnica no planejamento consiste em tratar tal limitação como uma variante, não como uma opção. Tratar uma variante como uma opção seria uma escolha artificial e uma opção ilegítima, que transformaria o plano em uma adivinhação, em uma aposta sobre o futuro. Naturalmente essa aposta é muito vulnerável, uma vez que, não se confirmando essa opção, o plano vem abaixo e o planejador se encontrará sem plano e sem estratégias. Aqui o planejamento estratégico propõe algo muito elementar, originado das concepções antigas de planejamento: trabalhar com “cenários de cálculo”. Um cenário de cálculo do plano conforma-se por meio de uma determinada articulação de opções e variantes. Nossa obrigação é ter um plano e uma estratégia para vários cenários, que se adaptem de forma ubíqua dentro dos extremos aparentemente impossíveis.


Oitava consideração: O plano é modular.

É composto por unidades e células que podem agregar-se, dimensionar-se, combinar-se de diferentes maneiras, segundo os objetivos propostos, à situação inicial e à estratégia elaborada. A unidade básica modular de plano será a operação. Uma operação é a aplicação de recursos ou insumos na produção de um resultado que altere a situação. Não se trata apenas de recursos econômicos nem de resultados estritamente econômicos; trata-se da aplicação de recursos escassos na situação para se alcançar como resultado uma mudança da situação. Trata-se, porém, de recursos genéricos, já que podem referir-se a recursos de poder, econômicos, de conhecimento etc. É um complexo de recursos, o que requer a produção de uma operação que, por sua vez, produz efeitos sobre todas as dimensões da realidade. Assim, haverá operações exigentes em recursos econômicos, operações exigentes em recursos de poder e operações exigentes em ambos os tipos de recursos. Dessa forma, a operação é a unidade celular do plano e se configura por uma agrupamento coerente de ações, com as quais o ator que planifica intenta alterar a realidade.

Essa concepção de plano é modular para: a) primeiro, fazer frente às mudanças no cenário de cálculo do plano, de modo que possa se introduzir, tirar ou redefinir algumas operações, com as quais se pode mudar a estrutura modular do plano por operações; b) segundo, para que cada operação pode ser dimensionada de acordo com as variáveis previsíveis, a fim de se usar mais ou menos recursos, conforme a situação o exija ou permita, possibilitando a existência de esboços rígidos (independentes do cenário em que ocorra na realidade) ou flexíveis.


Nona consideração: O planejamento não é monopólio do ator que planeja.

O plano enfrenta oponentes que também planejam. A idéia central do planejamento estratégico consiste em considerar que, além do ator que planeja, há outros atores na realidade que também planejam com objetivos distintos do planejador. Não existe um monopólio da capacidade de planejar, como supõe a teoria tradicional, onde o Estado é o único ator que planeja, e não se reconhece a existência de oponentes. Naturalmente, se não há oponentes, plano e esboço normativos podem ser idênticos. Porém, no planejamento situacional é imprescindível contar tanto com a resistência ativa e criativa dos oponentes como com a ajuda de possíveis aliados, conquistados no entendimento de objetivos mediatos e imediatos. Pois bem, se o ator que planeja coexiste na realidade com outros atores que também planejam, o processo de explicar a realidade se complica e o plano exige o momento estratégico. Surge, assim, a necessidade de explicar situacionalmente a realidade. Esta nova forma de diagnosticar consiste em apreciar a realidade não só a partir de nossa visão, mas também da visão “dos outros”. Quem são os outros atores ? O que produzem ? Como explicam essa mesma realidade ? Que planos têm ?


Porque, agora, o cumprimento do plano não se resolve simplesmente na política econômica e sim na luta política. Se nosso plano se cumpre, isso quer dizer que o plano dos outros não obtêm êxito. A resistência ao nosso plano não é passiva e estática; o plano se realizar por um ator que luta dentro dessa corrente do rio dos fatos, que nos empurra com sua força envolvente. Essa corrente do rio somos nós todos, atores que se esforçam para conduzir a realidade; nós imprimimos força a essa corrente. Por isso, em muitos casos, o plano é uma “contra-corrente” e supõe algum grau de conflito.


Décima consideração: O planejamento não dispõe sobre o tempo nem se deixa enrijecer por ele.

O problema do tempo no planejamento é um tema fascinante e de muitas arestas. Por um lado, em poucos dias, o plano comprime o tempo para simular a realidade para além do presente. Mas também joga com esse eixo do tempo, movendo-se desde o presente até o passado e o futuro. A idéia de planejamento em prazos distintos surge do fato de que estes espaços de tempo são interdependentes.

O planejamento situacional opera em quatro instâncias temporais articuladas e formalizadas: a) o planejamento na conjuntura: com o intento de, no dia-a-dia, sistematizar o cálculo que precede e preside a ação e que, para ser racional, requer dos planos prazos mais longos; b) o planejamento anual operativo: ou o plano de ação anual, que propõe uma referência direcional ou um farol direcional para o planejamento na conjuntura, mas que, por sua vez, para fundar sua proposta anual, requer referências direcionais mais distantes no tempo; c) planejamento para o período de governo: ou de médio prazo, que marca as trajetórias e objetivos que servirão de guia para o planejamento anual e conjuntural; d) planejamento a longo prazo e muito longo prazo: cuja função é antecipar o futuro que queremos criar e aí modelar nossos sonhos realizáveis; este planejamento em horizontes muito longos serve de farol direcional para o planejamento a médio prazo. O plano de prazo mais longo é a medida do valor direcional do plano de prazo mais curto. Por sua vez, o plano de prazo mais curto é a medida da ação concreta que permite avaliar a execução dos planos de prazos mais extensos. À medida que os prazos se alongam, nossos objetivos são mais estáveis e, a curto prazo, mais mutáveis. Pois bem, planejar através do tempo e em diversos prazos não tem o significado de uma aposta com data marcada sobre o futuro.

Dentro do possível, o planejamento tradicional centra o problema na arte de esboçar: o melhor plano é o que tem o melhor esboço, o melhor projeto, o projeto mais coerente. Mas o problema do planejamento começa com o esboço, não termina com o esboço. Por isso, existe o momento estratégico e o momento tático-operacional. O planejamento compreende também o cálculo que permite fazer as coisas; esse cálculo é interno no planejamento situacional e está fora do âmbito do planejamento normativo.

Textos utilizados nessa reflexão:
- Planejamento, de Marco Arroyo. INCA, 1994.
- Elementos conceituais do planejamento, da Escola Sindical 7 de outubro.
- Adeus, Senhor Presidente, de Carlos Matus. Litteris Ed., 1989.
- MAPP Metodo Altadir de Planificacion Popular, da Fundacion Altadir.
- Curso de planejamento estratégico - Método MAPP, do INCA. Ascom - UFPA, 1994.

sábado, 7 de junho de 2008

A Ecologia e os Paradigmas da Modernidade



Este texto é reprodução sintética e resumida do pensamento desenvolvido por Carlos Walter P. Gonçalves, em seu livro “Os (Des)Caminhos do Meio Ambiente” (Editora Contexto, 1989):


1. O Conceito de natureza

1.1. O conceito de natureza não é natural

Sem que nos apercebamos, usamos em nosso dia-a-dia uma série de expressões que trazem em seu bojo a concepção de natureza que predomina em nossa sociedade. Chama de “burro” a pessoa que não entende o que se lhe ensina; de “cachorro”, a alguém de caráter duvidoso; de “cavalo” a alguém mal-educado; de “galinha” a alguém volúvel nos relacionamentos amorosos. Em todos esses casos citados opomos seres da natureza a comportamentos que consideramos cultos, civilizados e bons.

É assim que a sociedade cria, inventa, institui uma determinada idéia do que seja a natureza. Nesse aspecto, o conceito de natureza não é natural, pois na verdade é instituído pelos homens, ou seja, é uma criação humana. Assim, a nossa sociedade irá definir a natureza em oposição à cultura. A cultura é tomada como algo superior e que conseguiu controlar e dominar a natureza. Podemos tomar como exemplo a justificativa utilizada correntemente de que “as leis são necessárias para evitar que retornemos ao reino animal”, uma vez que esse é o reino dos instintos, da desordem, da ilegalidade.

Portanto, para nossa sociedade, a natureza é um objeto a ser dominado por um sujeito, o homem, que institui a cultura como uma criação superior à natureza.

1.2. Os (des)caminhos do conceito de natureza no Ocidente

Essa concepção de mundo, que separa o homem da natureza é uma característica marcante do pensamento ocidental, cuja matriz filosófica se encontra na Grécia e Roma clássicas, que nos deteremos verificaremos a seguir.

Houve época, no Ocidente, em que o modo de pensar a natureza era radicalmente diferente. Na chamada era pré-socrática, filósofos como Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Xenófanes, Heráclito, entre outros, desenvolveram um conceito de natureza bastante diferente daquele começou a se impor principalmente após Sócrates, Platão e Aristóteles e que acabaram produzindo o modelo dominante da ciência moderna, e das dicotomias entre corpo x alma e natureza x cultura, entre outras, conforme conhecemos hoje.

Para os gregos pré-socráticos não existia a distinção entre o mundo físico, natural e o mundo psíquico, espiritual. Pois para eles o psíquico também pertence à physis. É famosa a afirmação de Tales: “Tudo está cheio de deuses!”. Podemos entender essa afirmação ao compreender que na physis encontra em si mesma a sua gênese, ela é arké, princípio de tudo aquilo que vem a ser. Na verdade, a physis não designa aquilo que hoje nós compreendemos por natureza. Para os pré-socráticos, o conceito de physis é o mais amplo e radical possível, compreendendo em si tudo o que existe. A physis é a totalidade de tudo o que é. À physis pertencem o céu e a terra, a pedra, a planta, o animal e o homem, o acontecer humano como obra do homem e dos deuses e, sobretudo, pertencem à physis os próprios deuses. Pensar o todo do real a partir da physis é pensar a partir daquilo que determina a realidade e a totalidade do ente.

Pensando a physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser, e, a partir da physis, pode então chegar a uma compreensão da totalidade do real: do cosmos, dos deuses e das coisas particulares, do homem e da verdade, do movimento e da mudança, do animado e do inanimado, do comportamento humano e da sabedoria, da política e da justiça.

É com Platão e Aristóteles que se começa a assistir a um certo desprezo pelas pedras e pelas plantas e a um privilegiamento do homem e da idéia. Nesse período, se inicia uma mudança no conceito de physis que, se não se fez perceber muito fortemente naquela época, produziu a atual concepção de natureza desumanizada e desta natureza não-humana.

Mas foi, sobretudo, com a concepção da forma como se tornou dominante no pensamento judaico-cristão que a oposição homem-natureza e espírito-matéria adquiriu maior dimensão. O judaísmo vai afirmar que “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança”. Com isso, separa o homem da natureza e sobe Deus aos céus. A forma como o cristianismo assimilou o pensamento aristotélico-platônico nos levará a separação entre espírito e matéria. Se Platão falava que só a idéia era perfeita, em oposição à realidade mundana, o cristianismo oporá a perfeição de Deus à imperfeição do mundo material. Essa leitura de Aristóteles e Platão efetuada pela Igreja Católica na Idade Média se fez evitando e censurando outras leituras, como bem demonstra Umberto Eco no seu romance “O Nome da Rosa”, e será a leitura que se consolidará até os dias atuais, mesmo após a Reforma Protestante.

A dívida que a Ciência e a Filosofia modernas têm para com a Idade Média é maior do que a princípio imaginamos. Foi na Idade Média, por exemplo, que teve início a prática da dissecação de cadáveres no Ocidente europeu. Esse fato é muito importante e se constitui numa decorrência lógica de uma Filosofia que separa corpo e alma, pois se a alma não mais habita o corpo depois de morto, este, como objeto, pode ser dissecado anatomicamente.

É com Descartes, todavia, que essa oposição homem-natureza, espírito-matéria, sujeito-objeto se tornará mais completa, constituindo-se no centro do pensamento moderno e contemporâneo. Dois aspectos da filosofia cartesiana vão marcar a modernidade:

1) o caráter pragmático que o conhecimento adquire. Descartes propôs “...conhecimentos que sejam muito úteis à vida em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas...” Dessa forma, o conhecimento cartesiano vê a natureza como um recurso, ou seja, um meio para se atingir um fim;

2) o antropocentrismo, isto é, o homem passa a ser visto como o centro do mundo; o sujeito em oposição ao objeto, à natureza. O homem, instrumentalizado pelo método científico, pode penetrar os mistérios da natureza e, assim, torna-se “senhor e possuidor da natureza”.

É impressionante como a Igreja não percebeu que estava construindo um pensamento, uma concepção, que separava o homem da natureza, mas que mais tarde iria expulsar Deus do universo humano.

O antropocentrismo consagrará a capacidade humana de dominar a natureza. Esta, dessacralizada, já que não mais povoada por deuses (como diria Tales), pode ser tornada objeto e, já que não tem alma, pode ser dividida, tal como o corpo já o tinha sido na Idade Média. É uma natureza-morta, por isso pode ser esquartejada.

O Iluminismo, no século XVIII, como que antecipando esse desfecho se encarregará de limpar a filosofia renascentista de seus traços religiosos medievalistas. A crítica da metafísica – de meta, além; e physis, natureza – ou seja, daquilo que está além da natureza, na concepção iluminista, será feita em nome da física, isto é, em nome da natureza tomada aqui no sentido do concreto, do tangível, do palpável. Para compreender o mundo é necessário partir do próprio mundo e não de dogmas religiosos ou que estão além do mundo, ou seja, metafísicos.

O século XIX assistirá o triunfo desse mundo pragmático, com a ciência e a técnica adquirindo, como nunca, um significado central na vida dos homens. A natureza, cada vez mais um objeto a ser possuído e dominado, é agora subdividida em física, química, biologia. O homem em economia, sociologia, antropologia, história, psicologia etc.

A idéia de uma natureza objetiva e exterior ao homem, o que pressupõe uma idéia de homem não-natural e fora da natureza, cristaliza-se com a civilização industrial inaugurada pelo capitalismo. As ciências da natureza se separam das ciências do homem; cria-se um abismo colossal entre uma e outra e, como veremos mais adiante, tudo isso não é só uma questão de concepção de mundo.

2. A Ciência diante da natureza

A ciência moderna foi constituída socialmente a partir das construções históricas que vimos acima e que se consolidam nos séculos XVIII e XIX. Podemos afirmar que a ciência moderna se configurou em torno de três eixos basilares:

I – A oposição homem e natureza;
II – A oposição sujeito e objeto;
III – O paradigma atomístico-individualista.


2.1. A oposição homem x natureza

Uma das formas mais claras que marcam essa dicotomia é a forma como se estruturam nossas universidades: de um lado as ciências da natureza e, de outro, as ciências humanas.

A busca de algo que comprove que o homem não é natureza se constitui numa verdadeira obsessão do pensamento herdado no Ocidente. O homem é um ser social, dizem-nos, por isso se diferencia dos reinos animal, vegetal e mineral. Porém, o desenvolvimento recente da etologia, ciência que estuda o comportamento dos animais na sua vida em grupo e, também, da sociobiologia indica, no mínimo, que o viver em sociedade é uma característica do reino dos seres vivos, sobretudo dos animais. Mais adiante veremos que tal problema só se coloca em virtude do pressuposto atomístico-individualista que tem dominado o pensamento ocidental.


Dizer que o homem é um ser social como se isso o distinguisse dos demais seres da natureza pode ser uma afirmação altissonante, mas que pouco faz avançar qualquer esforço de diferenciação entre o homem e a natureza, na medida em que os seres vivos, sobretudo os animais, já vivem socialmente. Isso não quer dizer que o homem não seja um animal social, mas que é social porque é animal e os animais vivem socialmente. Por outro lado, essa constatação não autoriza uma interpretação ingênua que reduziria o homem ao reino animal sem maiores reflexões. Assim como entre os animais há diferenças significativas, o homem tem também as suas especificidades.

2.2. A oposição sujeito x objeto

A separação entre espírito e matéria, tão cara à filosofia medieval, assume feições modernas na separação entre sujeito e objeto. O homem – o sujeito – debruça-se sobre a natureza-objeto, tornada coisa. Não há problema, portanto, se dividirmos a natureza em tantos objetos científicos quanto possível, pois se trata de uma “natureza morta”. A revolução industrial, muito mais que uma profunda revolução técnica, foi o coroamento de um processo civilizatório que almejava dominar a natureza e para tanto submeteu e sufocou os que a ele se opunham. O absurdo é que tal projeto teve – de antemão – de colocar o homem como não-natureza, pois se o homem não fosse assim pensado a questão da natureza sequer se colocaria. Ironicamente, a falácia dessas teses que opõem peremptoriamente o homem à natureza fica evidenciada na constatação de que historicamente a dominação da natureza tem sido, via de regra, a história da dominação do homem pelo homem e isso, evidentemente, não tem nenhuma justificativa na natureza.

Em nome da ciência, do seu rigor teórico e metodológico, tem-se justificado toda uma prática de dominação dos homens e da natureza. Já vimos muitos afirmarem que a culpa por este desdobramento não é da ciência. A ciência não é um saber que paira acima dos homens, mas fruto de uma relação social instituída. Afinal, foi em nome de um saber objetivo, capaz de promover a felicidade humana, que a ciência se afirmou frente à filosofia e à religião, com os iluministas do século XVIII. Aqueles que hoje vêem a ciência servir para a destruição de hiroshimas e nagasakis, para a corrida armamentista, para o genocídio e para o aniquilamento das condições naturais da vida, devem-se interrogar sobre o contexto sócio-histórico que instituiu essa ciência... Muitos já o estão fazendo e, sobretudo entre os jovens, vemos uma frontal recusa a esse projeto civilizatório.

As instituições que se impuseram em nossa sociedade pretendem aparecer a cada um de nós como habituais, rotineiras, eternas, em suma, naturais. Devemos ter muito cuidado quando nos tentam convencer de que isso ou aquilo é natural pois, quase sempre, o que se está querendo exatamente é escamotear é aquilo que é da natureza da história, da sociedade e da cultura, isto é, a tensão e o conflito de onde o novo, o diferente, podem brotar.

2.3. O paradigma atomístico-individualista da ciência moderna

A indagação sobre a unidade última da matéria, sobre a essência do ser, remonta também a Grécia antiga. Entre os pré-socráticos havia os que consideravam a água, o elemento constituidor da matéria. Outros, afirmavam ser o fogo, e outros ainda, o ar. Mas já havia a noção que existiria um núcleo indivisível e imutável, a unidade última da matéria, sua essência. Mas foi com o advento da ciência moderna que tal pensamento adquiriu consistência empírica.

Ao longo do século XIX, a investigação reducionista triunfou em todas as frentes. Isolando e reduzindo os elementos constitutivos de todos os objetos, descobriu as menores unidades da matéria. Primeiramente concebidas como moléculas e depois como átomos, reconheceu e quantificou os caracteres fundamentais de toda a matéria, massa e energia. Assim, o átomo resplandeceu como o objeto dos objetos, puro, pleno, insecável, irredutível, componente universal dos gases, líquidos e sólidos. Todo movimento, estado ou propriedade podia ser concebido como quantidade mensurável em referência à unidade primeira que era própria dele. Assim, a ciência física dispunha, nos finais do século XIX, duma bateria de grandezas que lhe permitia caracterizar, descrever e definir um objeto, fosse ele qual fosse. Trazia, ao mesmo tempo, o conhecimento racional das coisas e o seu reconhecimento. O método de decomposição e de medida permitiu experimentar, manipular, transformar o mundo dos objetos: o mundo objetivo.

Na física, o átomo; na biologia, o organismo, depois a célula e, finalmente, a unidade celular, a molécula; nas ciências do homem, o indivíduo – enfim, por toda a parte a unidade elementar, indivisível, nuclear, o indivíduo, reinava.

Todavia, foi no prosseguimento das pesquisas científicas que esse paradigma começou a ser problematizado: no início do século XX o átomo já não é uma unidade primeira, indivisível e irredutível: é um sistema constituído por partículas em interações mútuas – um sistema. Rutherford transformou o átomo num pequeno sistema solar constituído por partículas gravitando em torno de um núcleo, tão maravilhosamente ordenado como o grande sistema astral. No entanto, a ordem newtoniana não foi transferida dos céus para os subterrâneos do átomo. As partículas sofrem de uma “crise de identidade”: não é possível isolá-las de modo preciso no espaço e no tempo e hesitam entre a dupla e contraditória identidade de onde e de corpúsculo. Ora é concebida como um sistema composto por quarks (e o quark seria ainda menos redutível ao conceito clássico de objeto do que a partícula), ora é encarado como um “campo” de interação específica.

Enfim, foi a própria idéia de unidade elementar que se tornou problemática: não existe talvez uma última ou primeira realidade individualizável ou isolável, mas sim um continuum – teoria do Bootstrap – ou uma raiz unitária fora do tempo e do espaço.

Também dentro do campo da biologia, com o desenvolvimento da etologia – ciência que estuda os hábitos dos animais e das suas acomodações às condições do ambiente – ficou cada vez mais difícil compreender a evolução da vida animal, tomando-se como parâmetro o comportamento de um indivíduo a partir da dissecação do seu corpo em laboratório. O levantamento das associações estáveis com benefício recíproco, em numerosas espécies, mostrou a correlação entre as exigências do meio e as regularidades de um comportamento eminentemente social. Em suma, existe sociedade em toda a parte onde existe matéria viva relativamente organizada; ela não começou com a nossa espécie. Primatas, golfinhos e até pássaros possuem faculdades de aprendizagem e criação de novos comportamentos e delas dependem para seu alimento e reprodução.

Essas descobertas não tornam os homens iguais aos outros animais, pois cada espécie se organiza socialmente de modo próprio.

Na Economia, a mais bem situada das ciências humanas, onde se avançou no sentido da utilização dos recursos teóricos e metodológicos das ciências da natureza, o paradigma continua a ser o do indivíduo, deixando muitas vezes de perceber e reconhecer que o capital é uma relação social que se instaura num contexto de luta e não porque é melhor, mais racional ou natural. Que a continuidade e reprodução de uma sociedade em bases capitalistas pressupõe não só a garantia dos meios materiais necessários a cada ciclo de produção, mas também a reprodução das classes sociais, fazendo com que haja sempre pessoas sem condições de produzirem e manterem as suas vidas e que, assim, precisam se submeter aos donos do capital. Como não há nenhuma lei objetiva que governa essa luta pela reprodução das relações sociais – posto que ela pressupõe luta – a economia nunca poderá ser uma ciência exata. Em suma, não há como continuar pensando em termos de indivíduos. A sociedade humana não é uma soma de indivíduos.

Esta concepção atomístico-individualista que penetrou a imaginação do homem moderno – sua ciência, sua filosofia, seus conceitos de natureza e de homem –, não se desenvolveu independentemente do que ocorria na vida cotidiana dos homens do século XVI.

Dessa época em diante, cada vez mais as relações mercantis penetraram a vida dos homens. Não só nas cidades, mas também nas áreas rurais começou a se generalizar a prática de os senhores feudais cobrarem aos seus servos taxações e tributos em dinheiro e não somente em dias de trabalho ou em produto. A geografia social muda: quando um servo paga tributo ao senhor somente em trabalho ou em produto, ele o faz no interior do feudo; quando ele se vê obrigado a efetuar o pagamento em dinheiro, ele tem de ir ao mercado, à feira, à cidade. Entre o senhor e o servo temos agora não só o dinheiro, mas também a cidade e o comerciante. Entre os camponeses começa a se produzir uma diferenciação social: de um lado, alguns camponeses ricos, de outro, camponeses pobres. É claro que o número desses últimos era maior, pois exatamente pelo fato de muitos deles produzirem a mesma coisa para vender no mercado, criava-se uma situação de oferta maior que a procura. Assim, muitos deles se viam obrigados a contrair dívidas com juros altíssimos junto aos comerciantes para, voltando ao feudo, pagarem seus tributos em dinheiro. Isso levava a que, no próximo ciclo de produção, o camponês tivesse de produzir cada vez mais com o olho no mercado, pois tinha que pagar não só o tributo devido ao senhor, como também o que havia contraído de empréstimo, acrescido dos juros. Quanto mais tempo e espaço passa a dedicar ao mercado, isto é, à produção de valores de troca, menos tempo e espaço dedica à produção de valores de uso. Assim, se vê obrigado a adquirir na cidade as coisas que antes produzia no âmbito doméstico.

O paradigma atomístico-individualista que caracteriza a ciência moderna tem profundas raízes na realidade histórico-concreta dos homens, marcada por intensas revoltas camponesas da burguesia mercantil e industrial contra o primado da nobreza.

2.4. O natural é o justo

Natureza e justiça se tornam quase sinônimos a partir de finais do século XVIII. Adam Smith procura o preço natural, o preço justo, enfim, o valor real das mercadorias. A natureza passa a ser uma espécie de modelo para a sociedade: tal ordem é justa porque está de acordo com a natureza. A natureza, ao contrário dos homens, não tem subjetividade, dizem. Portanto, pode ser estudada objetivamente e a compreensão das suas leis, dos seus processos, da ordem que a governa deve servir de ponto de referência para uma sociedade racional, livre das paixões, das ideologias, e da subjetividade típica dos homens.

A busca de uma ordem natural para os homens levará à supervalorização das ciências da natureza. A física newtoniana será o paradigma da cientificidade. Augusto Comte, considerado por muitos como o fundador da sociologia, chamará a nova disciplina de física social.

Todavia, se a concepção newtoniana do universo consegue nos explicar o movimento sincronizado dos astros, ela não dá conta inteiramente da evolução do universo, pois constitui uma visão apenas sincrônica e não diacrônica. Tal e qual um relógio, o movimento dos astros imaginado por Newton era eterno, sempre igual. Ficava, portanto, em aberto o problema da evolução. Hegel tentará explicar a evolução através de uma dialética fechada que tinha uma finalidade dada de antemão, já que a humanidade caminha em direção à Razão (ao Espírito Absoluto). Mas Hegel, apesar de sua genialidade, não consegue explicar para o espírito do século XIX a evolução com base na natureza e sim com base na idéia.

O século XIX terá de esperar por Charles Darwin para conseguir uma explicação “natural” da evolução. Com ele, a evolução fica provada como um processo natural e, portanto, objetivo. A evolução passa a ser concebida como um processo natural, inexorável e independente da vontade dos homens. Daí, com freqüência serem tachados de radicais ou “ideológicos” aqueles que desejam mudar a ordem social e política, posto que são contra a ordem natural das coisas que é uma evolução lenta, gradual e segura. Portanto, a ordem é necessária ao progresso.

2.5. A ciência clássica em confronto com os novos fundamentos da ciência

Temos então, que a separação platônico-medievalista entre idéia e matéria ou espírito e matéria, traduzida modernamente pela separação entre sujeito e objeto, através de Descartes, começa também a ser abalada nos seus fundamentos pelas novas práticas científicas em desenvolvimento.

Freud, por volta de 1912, ao não aceitar que a história de cada um indivíduo derive de causas biológicas, assenta um poderoso golpe a essa concepção naturalista que grassa no século XIX. Freud estabelece com a psicanálise uma relação entre sujeito e sujeito e não de sujeito-objeto. Na prática psicanalítica, o sujeito cognoscente, aquele que se propõe a conhecer, não se relaciona com um objeto de conhecimento, mas com um outro sujeito que também se propõe a conhecer. O “objeto” de conhecimento só tem sentido se ele de alguma maneira fala, isto é, existe enquanto sujeito. Estamos assim diante de uma outra prática científica.

Na antropologia, pelo menos desde os funcionalistas Malinowski e Margareth Mead, não se pode julgar um povo, uma cultura, enfim, uma comunidade, a partir dos valores de quem as estuda. Lévi-Strauss elabora uma crítica ao etnocentrismo – que via os outros povos como sendo estágios de um único desenvolvimento da cultura européia –, como também ao relativismo cultural, que acaba por ignorar a especificidade de cada cultura. O antropólogo que se propõe a conhecer um povo-cultura deve deixar que ele fale para tentar compreendê-lo. As comunidades primitivas, por exemplo, não podem mais ser tratadas como objeto.

Marx, se outros méritos não teve, pelo menos soube colocar a questão da relação do sujeito com o objeto, do conhecimento com a realidade que existe fora de quem conhece, através do conceito de “práxis”. A práxis, enquanto formulação de Marx, supera a dicotomia clássica ocidental entre teoria e prática, entre sujeito e objeto, entre trabalho intelectual e braçal, pois pressupõe a reflexão e a ação como dois momentos necessários do agir humano. Essa concepção implica necessariamente o não dogmatismo. Muito diferente, portanto, da forma como se desenvolveram vários grupos ditos marxistas.

Em vários campos do conhecimento a relação sujeito-objeto vem sendo repensada. Se antes todo o problema estava na melhor compreensão e explicação do objeto, não havendo problema no outro pólo da relação, isto é, o sujeito, cada dia mais se impõe refletir sobre os limites do próprio sujeito que deseja conhecer e que, tenha ele consciência ou não, está inserido numa cultura, num determinado momento, com as especificidades individuais psiquicamente traduzidas em cada um. Quando Gaston Bachelard, físico e filósofo, diz que o objeto designa o método muito mais que nós o designamos, quer dizer que é preciso que estejamos atentos ao objeto, abertos e flexíveis, para adequarmos o método de investigação às suas particularidades. Quem dispõe de um método a priori e o aplica rigidamente a uma objeto é exatamente aquele que privilegia o sujeito. Na verdade, não há aí nem uma relação sujeito-objeto, mas do sujeito consigo mesmo através de um método geral.

2.6. A teoria sistêmica e o holismo

Desde Isaac Newton que o universo foi cientificamente concebido como um sistema. Todavia, não tinha evolução, sempre repetia o mesmo movimento, tal como um relógio que marca o tempo dos outros seres, mas não o seu próprio tempo. No século XIX, com Charles Darwin, verifica-se que há evolução da natureza e o homem (mais uma vez dessacralizado) deixa de ser uma criação divina, passando a ter uma ascendência nada nobre, dos primatas. No entanto, em todo lugar, os cientistas andavam em busca daquela unidade elementar indivisível: o átomo, o organismo – ou a molécula – o indivíduo (mesmo Darwin estava nessa busca).

Ainda no século XIX, o segundo princípio da termodinâmica, esboçado por Carnot e formulado por Clausius (1850), introduz uma concepção inovadora que vai mexer profundamente com os físicos. Diz tal princípio que enquanto todas as outras formas de energia podem se transformar integralmente umas nas outras, a energia que tem a forma de calor não pode reconverter-se inteiramente e perde assim uma parte de sua aptidão para efetuar trabalho. Ora, toda transformação, todo trabalho liberta calor, contribuindo assim para esta degradação. Esta diminuição irreversível da aptidão para transformar-se e para efetuar um trabalho, própria do calor, foi chamada por Clausius de entropia. Segundo Clausius, a entropia do universo tende para o máximo, isto é, para uma morte térmica. Se, de um lado, as premissas de Clausius foram contestadas na medida em que ele pensou o conjunto do universo como um megassistema fechado, por outro, abriu uma questão importante, impensável nos marcos newtonianos. Nestes marcos, o universo era eterno e, portanto, sempre igual a si mesmo e Clausius aponta para sua morte.

No século XX, cada vez mais, a idéia do sistema começa a ganhar consistência. Por todo o lado o sistema resplandece: sistema atômico, sistema solar, sistema celular, ou molecular, sistema social, sistema urbano. Ao reducionismo atomístico-individualista até então dominante e que procurava o indivíduo e a substância indivisível opõe-se agora o sistema holista. Onde reinava o indivíduo, reina agora o todo, culminando com a teoria geral dos sistemas de Ludwig Von Bertallanfy. Enfim, o sistema ganhou cidadania e o todo é maior que as partes. Vê-se o todo em toda parte e não as particularidades de cada sistema. Não se vê, porém, que os sistemas existem sob determinadas condições e não sob qualquer condição. Ficamos, pois, diante de um novo reducionismo: o do todo, o sistêmico.

Deve-se ressaltar ainda que esse processo se desenvolveu paralelamente ao fortalecimento do papel do Estado frente à vida dos indivíduos, tanto na sua vertente capitalista clássica, como é o caso do nazismo e do fascismo, como na vertente que se pretendia anticapitalista, o socialismo real.

2.6. O Ecossistema

As descobertas científicas deste século, principalmente as provenientes da biologia, conseguiram apontar para um conceito mais sólido, que é o de ecossistema. O ecossistema compreende, antes de mais nada, o biótipo – o meio geofísico – e a biocenose – conjunto das interações entre os seres vivos de todas as espécies que povoam este biótipo. Constitui, assim, uma unidade complexa de caráter organizador ou sistema.

Na verdade, cada ecossistema é um todo que se organiza a partir das interações dos seres que o constituem. Assim, o todo, o ecossistema, só existe pelas interações entre as partes e são essas complexas interações que o constituem. Nesse sentido, o todo não é mais que as partes. Todavia, o ecossistema emerge a partir de uma série de ações egoístas e retroage sobre os diversos seres que manifestam qualidades de que não disporiam isoladamente. Nesse sentido, o todo também seleciona as partes, condicionando-as. É esta complexidade que o pensamento reducionista, seja ele egoísta ou ecoísta, não quer reconhecer. Cada ecossistema é uma organização espontânea que, baseada em suportes geofísicos deterministas e em seres geneticamente determinantes, faz-se a si mesmo, sem ser incitado ou obrigado por um programa, sem dispor de uma memória autônoma e duma computação própria, sem ser organizado e ordenado por um aparelho de controle, regulação, decisão, governo. E é através deste fervilhar cego, míope, egocêntrico, entre desordens, destruições, proliferações indescritíveis que um Universo se organiza.

Enfim, a espontaneidade é eco-organizadora.

Na natureza as interações que se operam na biocenose são ao mesmo tempo complementares – associações, sociedades, simbioses, mutualismos; – concorrenciais – competições, rivalidades; e antagônicas – parasitismos, fatigas, predações.

O desenvolvimento recente da cronobiologia, por outro lado, veio mostrar a profundidade da relação entre o mundo vivo e a ordem cósmica, através da idéia de ritmo circadiano, ou seja, da propriedade que têm os ritmos biológicos internos – endógenos – de mostrar, em condições ambientais constantes, uma periodicidade próxima de 24 horas.

Dessa forma, a radiação solar que traz energia à vida, a rota da terra em torno do seu próprio eixo e o movimento que faz em torno do sol produzindo as variações dia/noite e as estações com suas alternâncias cíclicas de luz, temperatura, hidrologia, condicionam a organização biológica dos indivíduos, das espécies, dos ecossistemas, sincronizando suas atividades e seus processos de fecundação, germinação, hibernação, morte etc.

Assim, a ordem do sistema solar não se limita a comandar os grandes ciclos da biosfera. Os ciclos cosmofísicos estão no interior de cada indivíduo vivo. É próprio da eco-organização constituir um poli-relógio que concilia o grande relógio astrogeofísico e os inúmeros micro-relógios vivos. Constitui-se assim um grande ciclo eco-organizador.

O próprio universo animal está sob o comando conjugado do grande relógio geocósmico, dos relógios vegetais e dos relógios individuais, tanto nas ações cotidianas como na atividade sexual, o nascimento, o crescimento, e o desenvolvimento e, por vezes, mesmo a senescência e a morte. Ao mesmo tempo os seres vivos modificam a nebulosidade, a insolação, a temperatura, a composição química do ar. A vida está, portanto, inserida na ordem cósmica não só ao nível micro – os ritmos circadianos – como também ao nível macro.

Apesar das inúmeras espécies vivas que hoje conhecemos, é preciso considerar que elas constituem uma ínfima parcela das que existiram. As profundas alterações por que já passou nosso planeta com a formação/destruição de montanhas, avanços e recuos de calotas polares, invasões e recuos da água do mar fazem da história da natureza um campo onde, em vez de ser ressaltada a estabilidade dos ecossistemas em estado de clímax, deveríamos ressaltar a aptidão que apresentam para construir estabilidades novas.

Cada ser vivo expele incessantemente resíduos, matérias degradadas e tóxicas que tendem a poluir o seu ambiente, e o ecossistema produz assim incessantemente a sua própria poluição. Ao mesmo tempo, sofre um excesso de morte em relação à morte “natural”: perece-se não só de senescência (velhice) e não só para alimentar os outros, mas também de acidente, de risco, de fome, de carência. Simetricamente, o ecossistema sofre de um excesso de vida, de uma orgia de ovos, de espermatozóides, germes, esporos que se alcançassem a existência quebrariam todas as regulações ecológicas, destruiriam as condições de vida para a maior parte das espécies e provocariam a morte generalizada. Temos de ver agora que o excesso de vida responde ao excesso de morte, e que o excesso de morte responde ao excesso de vida. Entrevemos aqui que a morte é muito mais que a morte, visto que é, não só desorganizadora/destruidora, mas também nutritiva, regeneradora, e, enfim, reguladora.

Assim, surge-nos a virtude suprema da eco-organização: não é a estabilidade, é a aptidão para construir estabilidades novas, não é o regresso ao equilíbrio, é a aptidão da reorganização para reorganizar-se a si mesma de modo novo sob o efeito de novas reorganizações. Por outras palavras, a eco-organização é capaz de evoluir sob a irrupção perturbadora do novo e esta aptidão evolutiva é o que permite à vida, não só sobreviver mas desenvolver-se, ou antes, desenvolver-se para sobreviver.

Infelizmente, ou fatalmente, a concepção atomístico-individualista concebeu a evolução tomando como princípio fundamental a mutação genética. A eco-evolução está marcada por inúmeras mutações ecológicas, isto é, reestruturações novas sob o efeito de perturbações a longo e a curto prazo: submersões, emersões, enrugamentos, elevações, erosões, tropicalizações, glacializações, desertificações, migrações, aparecimentos de novas espécies.

A concepção atomizada da evolução (darwinista) vê como princípio de sobrevivência a seleção “natural” das espécies. Não vê que esta seleção é inseparável duma integração ecossistêmica. Não vê que as condições de seleção se modificam em função da evolução dos ecossistemas que produz novas regras de integração e novos critérios de seleção. Não vê, sobretudo, que o que é “selecionado” não são apenas as espécies aptas para sobreviver em tais ou tais condições, mas tudo aquilo que favorece a regulação e a reorganização dos ecossistemas. Aquilo que é selecionado é tudo aquilo que pode fortalecer uma cadeia, um ciclo, um circuito; tudo aquilo que reorganiza.

E, mais complexo ainda, não são apenas essas retroações e novas inter-relações que “selecionam” os indivíduos e as espécies. Estas também elegem ecossistemas, como é o caso das migrações de animais que sazonalmente chegam e se deslocam de um hemisfério a outro, atravessando oceanos e continentes para adotar outros ecossistemas.

De outro lado, é necessário notar que a diversidade genética no seio de um ecossistema aumenta a sua capacidade de resistência às perturbações. Onde existe homogeneidade, quando um indivíduo é atingido, todos os seus semelhantes rapidamente o são. Num ecossistema de grande diversidade genética a biocenose também se complexifica, criando múltiplas relações de antagonismos e complementariedade que tornam tal ecossistema, deste modo, mais apto a absorver perturbações. E mais: a diversidade ecológica apresenta resistência maior contra agressões e perturbações quando o ecossistema tem uma fronteira aberta para outros ecossistemas; e quando o limite entre dois ecossistemas é impreciso. Todavia, há que se ressaltar que a diversidade não é incompatível com a existência de uma espécie dominante. Aliás, todo ecossistema é dominado por uma ou várias espécies que formam o grosso da biomassa.

É, de fato, surpreendente verificar que milhões de seres diferenciados – que vão desde o substrato geofísico até os seres vivos mais variados (plantas e animais aos milhares), sem nenhum aparelho central, sem nenhum controle, sem nenhum governo – consigam produzir situações de equilíbrio. Mais ainda, onde cada ser vivo não está voltado para a sobrevivência e para a organização do todo, do ecossistema, mas, pelo contrário, é “introvertido” para o seu próprio interesse, a sua própria sobrevivência de indivíduo, de grupo, de espécie. Está na verdade destinado ao “para-si” e não ao “para-todos”. Isso poderia sugerir que o individualismo grassa com toda força. Todavia, cada ser vivo autônomo e singular é, ao mesmo tempo, uma exigência existencial para o outro. Esta exigência é que cria imediatamente uma solidariedade e uma complementariedade do outro em relação a si próprio.

É preciso compreendermos que a espontaneidade que está no interior de cada ecossistema produtor de ciclos, cadeias, interações e retroações é fruto de uma longa história evolutiva através da qual, exatamente, constituíram-se essas interações complementares, antagônicas, bem como essas cadeias trópicas.

Todas essas considerações nos levam a necessidade de superar as duas concepções de natureza que dominam na sociedade ocidental:
1) ou a natureza é o lugar onde todos lutam contra todos, onde impera a “Lei da Selva”,
2) ou a natureza é o lugar da bondade e da harmonia.
Ora, a natureza não é nem o caos nem tampouco um cosmos perfeitamente ordenado e organizado.

É preciso romper com o pensamento simplificador e excludente e afirmar a complexidade. Afinal, alguns só querem falar da rosa. Outros só destacam o espinho. É necessário que se elabore a visão que comporta tanto a rosa quanto o espinho: a visão da roseira.

3. O Homem Natural ou Artificial

3.1. A Natureza se fazendo homem – a hominização


A tradicional dicotomia homem x natureza que conformou o saber na sociedade ocidental é questionada quando a questão ambiental exige um novo paradigma onde a natureza e a cultura não sejam excludentes.

Após verificar que os seres vivos interiorizam os ciclos astrofísicos, percebe-se também que movimentos a curto e médio prazo provocam perturbações nos ecossistemas. O mais conhecido foi o que ocorreu ao final da era terciária quando uma mudança climática fez com que a Terra ficasse menos úmida, o que provocou diminuição da cobertura florestal, aumento da área de savana e, com isso, o desaparecimento dos grandes habitantes do planeta, tais como os dinossauros.

Diz Leroi-Gourhan que a partir daí a hominização jamais deixaria de andar com os próprios pés. O homínida diferencia-se do chimpanzé não pelas suas aptidões intelectuais nem simplesmente pelo peso do seu cérebro, mas sim pela locomoção bípede e pela postura ereta. O bipedismo é o elemento decisivo que libertará a mão de toda e qualquer obrigação locomotriz. Assim, o bipedismo abre o caminho que conduz ao homo sapiens: a posição de pé liberta a mão; a mão liberta os maxilares; a verticalização e a libertação dos maxilares libertam a caixa craniana das sujeições mecânicas, abrindo assim novos caminhos ao processo evolutivo. Acredita-se que com a substituição progressiva da floresta alimentadora pela savana, grupos de jovens primatas tenham iniciado essa aventura que conduziu ao homo sapiens.

A savana é um campo favorável para o emprego total das aptidões bípedes, bímanas e cerebrais partindo das necessidades e perigos que ela significa. Servirá de estímulo ao desenvolvimento das aptidões de todos os tipos já existentes no antepassado da floresta. A busca do alimento torna-se perigosa. É preciso poder interpretar em sinais os movimentos mais ínfimos, em indícios os vestígios mais sutis, é preciso estar sempre alerta, individual e coletivamente para a defesa e, se for preciso, para o ataque. É nessas condições que vão se espalhar pela savana pequenos grupos que, provavelmente saídos de uma só fonte, vão no decorrer de centenas de milhares de anos e até mesmo de milhões de anos, diferenciar-se geneticamente.

É sobre esses seres que agirão pressões seletivas em benefício de tudo aquilo que desenvolve a agilidade, a habilidade, a técnica, isto é, as características cada vez mais hominídeas. Já por aí se vê que sobreviver na savana exige cada vez mais o desenvolvimento da memória, da articulação dos estímulos advindos do exterior. Deste modo, uma relação cada vez mais intensa e complexa vai estabelecendo-se entre o ecossistema e o homínida. Neste aspecto, o ecossistema é co-produtor e co-organizador da caça, práxis produtora e organizadora que vai sobreestimular os desenvolvimentos físicos, cerebrais, técnicos, cooperativos, sociais.

A caça teve início há milhões de anos. Progrediu lentamente e acentuou-se nos últimos 500 mil anos até por volta de 8 mil anos atrás, quando deixou de ser a principal atividade da maior parte dos povos. A caça deve ser considerada um fenômeno humano total; não só atualizou e exaltou aptidões pouco utilizadas e suscitou novas aptidões; não só transformou a relação para com o meio ambiente; também transformou a relação de homem para homem, de homem para mulher, de adulto para jovem. A caça habiliza e habilita o homínida, fala dele o intérprete de um numero muito grande de estímulos sensoriais ambíguos, faz com que a inteligência tenha de se haver com o que há de mais hábil e astuto na natureza, o animal-presa e o animal-predador, com ambos dissimulando-se, esquivando-se, enganando-se. Estimula aptidões estratégicas: a atenção, a tenacidade, a combatividade, a audácia, o ardil, o engodo, a armadilha, a espreita.

A caça produzirá mudanças sociais, pois enquanto leva os homens cada vez mais longe, a maternidade, por seu lado, conserva as mulheres nos abrigos; as crianças bímanas não podem, como os pequenos quadrúmanos, agarrarem-se nas costas de sua mãe e o prolongamento da fase infantil viria fazer com que as mulheres se dedicassem cada vez mais aos cuidados maternos. Permanecendo sedentárias, as mulheres passam, então, a dedicar-se à forragem e à colheita, cuidando das necessidades vegetais do grupo. Uma dualidade ecológica e econômica instala-se, a partir de então, entre homens e mulheres. Pouco a pouco formar-se-á uma densa solidariedade entre os homens: as longas relações de homem para homem nas provas, nos perigos, nos triunfos vividos juntos; o prolongamento da adolescência à medida que a caça praticada por adultos se complexifica.

Concomitante com isso, o código genético do hominídeo desenvolvido, principalmente do sapiens, produz um cérebro cujas possibilidades organizadoras são cada vez mais aptas à cultura, isto é, à complexidade social. No entanto a cultura constitui, a partir de então, para a sociedade, um centro epigenético dotado de relativa autonomia, tal como o próprio cérebro, do qual ele não pode ser dissociado, e a verdade é que ela contém em si informação organizacional que será cada vez mais rica. Isso é o mesmo que dizer que a cultura não constitui um sistema auto-suficiente, já que precisa de um cérebro desenvolvido, de um ser biologicamente muito evoluído; neste sentido, o homem não se reduz à cultura. Todavia, a cultura é indispensável para produzir o homem, isto é, um indivíduo altamente complexo numa sociedade altamente complexa, a partir de um bípede cuja cabeça vai se dilatar cada vez mais.

Essa complexidade cultural adquirida, que necessita de um cérebro desenvolvido e apto para a complexidade, vai permitir que uma sociedade, através desse patrimônio genético-cultural, conserve essa complexidade culturalmente desenvolvida em condições ecológicas inteiramente novas.

A idéia de cerebralização deve ser entendida na sua complexidade biológica e sóciocultural como um processo que não é linear nem paralelo, onde esses termos se conjugam e se relacionam. O cérebro do sapiens possui muito mais aptidões do que as que utilizamos ainda hoje.

Deve-se ter claro que o aumento da complexidade social, que o desenvolvimento da caça permite, exigiu o desenvolvimento da linguagem, que, por sua vez, só pôde se desenvolver plenamente a partir de determinadas mutações genéticas. A caça coletiva , a repartição do alimento, o transporte de uma crescente variedade de coisas, tudo isso fazia pressão para um organização social mais complexa, que somente é possível com uma comunicação mais flexível. Não se trata, portanto, de uma sociedade mais complexa que precisa de uma maior comunicação entre seus indivíduos; é preciso acrescentar que estamos diante também de indivíduos mais complexos que vão exigir uma mais complexa comunicação.

Assim é perfeitamente evidente que o grande cérebro do sapiens só podia surgir, ser bem-sucedido, triunfar, depois da formação de uma cultura mais complexa, e é surpreendente que se tenha podido durante muito tempo acreditar exatamente o contrário.

O fato de as sociedades humanas desenvolverem ao longo do tempo um patrimônio de saber sem o qual cada indivíduo no interior de uma sociedade-cultura não consegue viver, não quer dizer que os homens saltaram da natureza para a cultura. Na verdade, desenvolveu sua natureza.

É preciso romper com o cartesianismo do res cogitans, o sujeito que pensa e a res extensa, o mundo que se apresenta diante de nós. Entre a cabeça que pensa e o mundo que está à nossa frente existe o corpo que é o que cada um de nós tem para estar no mundo. E o corpo não admite a separação entre o homem e a natureza: ele comporta os dois indissociavelmente.

3.2. Sociedade Natural. Natural?

O homem, conforme vimos no processo de hominização, é um ser que por natureza produz cultura, esta é sua especificidade natural. Diferentemente do pensamento corrente, os homens ao longo da história criam normas, regras e instituições não para evitar cair no estado de natureza. Ao contrário, eles o fazem desenvolvendo a sua própria natureza não somente em função dos estímulos avindos do meio ambiente, mas também das relações que os homens estabelecem entre si.

O homem é um animal que vive nos mais diferentes ecossistemas, não só se adaptando a eles, mas, também, sobretudo a partir da revolução neolítica, moldando-os a ele, em virtude das suas necessidades histórico-culturalmente desenvolvidas. Cada povo-cultura é uma experiência única e radical e é no interior desse ambiente cultural que se desenvolvem os atributos e qualidades sem os quais, para os indivíduos que nele vivem, a vida não vale a pena ser vivida. Desse modo, todos os povos e culturas são e não são naturais, a não ser que os queiramos submeter a um modelo único que consideremos natural (projeto tentado pelo nazifascismo).

Na verdade, esta tendência a buscar na natureza o paradigma para a sociedade está fortemente enraizada na cultural ocidental, particularmente após os séculos XVIII e XIX, em certas vertentes do Iluminismo e do Racionalismo. A filosofia positivista, com absoluta hegemonia nos meios científicos, é a maior expressão desse fato.

O que o Iluminismo racionalista não conseguiu incorporar foi a idéia de que as relações humanas, sócio-historicamente instituídas, não se estabelecem exclusivamente em função de interesses práticos imediatos como aqueles que se desenvolvem na mediação homem-natureza (técnica), mas também num campo de relações intersubjetivas que é mediado simbolicamente (relação homem-homem). Todo o racionalismo moderno veio se desenvolvendo em torno da relação sujeito-objeto, sem levar na devida conta que é uma outra razão que move a relação sujeito-sujeito na sociedade.

É da incompreensão dessa problemática que parte a mania de chamar de irracional a um povo que tem hábitos, valores e crenças diferentes da nossa. Toda cultura observada de fora ou sob a ótica de outros valores aparece como irracional. Em suma, toda e qualquer cultura é um sem sentido que faz sentido para as pessoas que nela vivem. Nenhuma cultura é, assim, racional, ao mesmo tempo que todas são do ponto de vista de seus próprios valores. As diversas culturas não são imutáveis; novas formas de organização sociocultural são inventadas e criadas; novos atributos e qualidade desabrocham e outros são inibidos num processo absolutamente sem fim de adaptações, conflitos e lutas de caráter variado.

O homem não é simplesmente um ser inacabado, é mais do que isso: é um ser inacabável E esta é uma idéia politicamente essencial, pois significa que o homem não tem fim, a tolerância e o respeito, sobretudo para com quem pensa diferente devem estar absolutamente assegurados entre nós. Isto não nos termos colocados pela tradição liberal que fala de direito à liberdade, inclusive para que um homem possa oprimir e explorar outro homem em nome do progresso e da livre iniciativa quando a iniciativa dos demais está sendo negada.

Um conceito-chave de toda cultura é o conceito de natureza. Essa afirmação talvez abra uma pista interessante para novas reflexões, libertando-nos da armadilha em que até agora estivemos enredados tentando buscar aquela característica que faria o homem saltar do reino da natureza para o reino da cultura. As novas descobertas científicas fazem cair por terra todas as tentativas de des-situá-lo da natureza, pois como diz Serge Moscovici, tudo nos incita a pôr fim à visão de uma natureza não-humana e de um homem não-natural.

Talvez o necessário seja que todos os que se interessam pela ecologia afirmem com veemência – com todas as implicações daí decorrentes – que a sociedade tem limites na sua relação com os outros seres orgânicos e inorgânicos, que habitam o nosso planeta. Mas, quem determinaria tais limites? A princípio, os biologistas poderiam afirmar que, em se tratando da preservação da vida e da espécie, não há problema quanto à forma de preservação, desde que isso seja feito com eficácia. Todavia, existem outros – entre os quais Carlos Walter P. Gonçalves e eu nos incluímos – que acreditam que o desenvolvimento da vida humana em toda sua plenitude exige um terreno onde os homens livremente possam definir seus destinos e a inexistência dessa condição impede o desabrochar inerente à vida humana que é negado em nome de uma vida puramente vegetativa, biológica. Esta questão não é nova, e está mesmo na origem da filosofia da Grécia antiga: os gregos originariamente chamavam pólis ao muro que demarcava, delimitava, a cidade do campo. Posteriormente, pólis passou a designar o que estava contido intramuros. Cidadão era aquele que podia participar da discussão sobre os destinos da pólis. Escravo era aquele a quem estava vedado esse direito, também fora do alcance das mulheres. Política era a arte de definir os limites para a vida na pólis. Tirania, quando um definia os limites para toda a pólis. Democracia, quando todos os cidadãos governavam e autodefiniam esses limites.

Do movimento ecológico parte um brado que precisa adquirir um contorno político-cultural profundo: nossa sociedade está destruindo as fontes vitais à sua sobrevivência. E esse brado traz em si uma das características mais especificamente humanas: a consciência da morte. Eis a razão maior do movimento pela vida que, como não podia deixar de ser, é um impulso radical, no sentido mais profundo do termo, ou seja, que busca ir à raiz das coisas para dela fazer emergir um pensar, um agir e um sentir mais lúcido. A história já demonstrou que não caminha necessariamente para frente. As sociedades que se consideram os mais civilizados foram os responsáveis pelas maiores barbáries do nosso século: Auschwitz, gulag e os bombardeiros de napalm no Vietnã, por exemplo, não podem ser apontados como símbolos de progresso da humanidade.

3.3. A Sociedade Moderna e a Natureza

Conforme vimos, a extrema fragmentação do conhecimento, sobretudo a partir do século XIX, consagrou a separação entre o homem e a natureza. Descartes, Galileu, Leibniz, Isaac Newton contribuíram para formar o imaginário iluminista, fundado na idéia da physis ordenada tal e qual um relógio, cujos ponteiros fazem sempre os mesmos movimentos.

A física moderna começou pelos céus, com a astrofísica, onde mais facilmente se percebem as regularidades, ao contrário do mundo das plantas e dos animais, menos constante à escala da vida cotidiana dos homens. A idéia de mecanismo, proveniente da física, rapidamente deixou os céus e desceu à terra para – através das máquinas – se constituir na imagem de progresso palpável e tangível para a humanidade. A “razão técnica” se impunha à medida que a burguesia e seu capitalismo se afirmavam.

A vida concreta dos indivíduos inseridos nas relações sociais capitalistas passou cada vez mais a ser controlada pelo relógio, esse mecanismo regular por excelência, cuja função é sincronizar os movimentos de cada um: para que a fábrica funcione é necessário que todos estejam a postos, à mesma hora, no mesmo lugar; a fábrica exige que as matérias-primas cheguem no tempo certo; os comerciantes devem estar a postos para comprar e vender na hora certa; as demais fábricas devem fornecer em tempo hábil os insumos; enfim, tudo deve ser sincronizado através de uma rede de transportes e comunicações com o máximo de precisão horária possível. Nesse mundo, o relógio se torna um mecanismo de significado fundamental, pois permite regular, controlar e sincronizar a vida social fazendo-a funcionar.

Assim, ficam evidentes as profundas raízes, socialmente instituídas, que darão suporte real às concepções teórico-metodológicas que privilegiarão nas suas análises o sincrônico e não o diacrônico. O Funcionalismo, o Estruturalismo e a Teoria Geral dos Sistemas – que privilegiam o estudo do modo como um determinado fenômeno (sistema) atua, em detrimento da análise do modo como se constituíram as condições de seu funcionamento – ganham uma solidez mais aparente que real. Isso porque embora a realidade apareça à primeira vista como funcional, logo aparece uma greve, um conflito e múltiplas tensões que sinalizam a existência de contradições no interior da aparente funcionalidade do sistema.

3.4. Tempo, trabalho, produtividade e técnica

Com o advento da sociedade capitalista nos finais do século XVIII, a ciência e a técnica passaram a assumir um lugar central na vida dos homens. A idéia de progresso é associada à industrialização, um dos sinônimos de modernização. É a técnica, acredita-se, que tornará possível menores custos de produção, maior quantidade de produtos num mesmo tempo de trabalho. Produtividade é um conceito que implica o de tempo e o de trabalho, fazendo com que as noções de tempo e de trabalho passassem por uma profunda transformação até serem apropriadas modernamente pelas burguesias mercantil e industrial em sua preocupação com a produtividade.

O relógio, instrumento de medida do tempo, é o símbolo que sintetiza a ordem monástica e a ordem comercial na cidade da Idade Média. Esse tempo abstrato, medido matematicamente, advindo dos monastérios, vai ser apropriado pela burguesia mercantil , cujas preocupações – pelo próprio caráter da sua atividade – são sempre de ordem quantitativa. Afinal, um negócio mostra-se melhor do que outro pelo seu rendimento medido em cifrões. Assim, pouco a pouco, a idéia de quantidade passou a prevalecer nas análises e avaliações sobre a noção de qualidade.

A partir do século XVI o trabalho passou da mais humilde e desprezada posição (entre os gregos, o trabalho era atividade dos escravos) ao nível mais elevado e à mais valorizada das atividades humanas, quando Locke descobriu que o trabalho era a fonte de toda a propriedade. Seguiu seu curso quando Adam Smith afirmou que o trabalho era a fonte de toda a riqueza e alcançou seu ponto culminante no “sistema de trabalho” de Marx, onde o trabalho passou a ser a fonte de toda a produtividade e expressão da própria humanidade do homem. Mas aqui cabe uma pausa para analisar um elemento importante na consolidação deste “mundo do trabalho”.

Segundo Max Weber, foi a Reforma Protestante que criou as condições morais, espirituais e ideológicas adequadas para que o capitalismo florescesse. O primeiro homem a utilizar o termo profissão, no sentido moderno, foi Lutero. Para ele, os monges ociosos eram egoístas, isentos de amor ao próximo, que nada somavam ao bem-estar de sua comunidade, e louvável era a lembrança de Cristo, que se esforçou para atender à tarefa que lhe foi confiada por Deus: salvar a humanidade. E por obedecer a seu Criador, Cristo obteve suas graças. Citando este novo conceito imposto por Lutero, Weber coloca o despertar da valorização moral da vida profissional entre as mais difíceis a serem cumpridas pela Reforma.

Mas não foi Lutero quem traçou a “rota” do capitalismo moderno. Tal honra cabe ao suíço Johannes Calvino e os seus seguidores. Calvino desenvolveu uma forma de protestantismo que provocou uma cisão com a reforma alemã, passando a influenciar a vida econômica da França, Holanda, Países Baixos e dos puritanos ingleses e norte-americanos. O trabalho se tornou tão importante para os calvinistas por dois motivos:
1) Esforços e dedicação são meios para resistir às tentações do dia-a-dia (carne);
2) Os calvinistas entendiam o mundo como um “cenário único para a louvação ao Senhor”. Ou seja, a glória de Deus se deixa difundir através do trabalho árduo. No entanto, somente os escolhidos (aí entra a teoria da predestinação) podem fazê-lo sob a graça de Deus, pois Ele não quer apenas a realização de uma boa obra, mas a identifica com a personalidade do indivíduo.

De toda essa especulação religiosa, como diz Weber, terminou por nascer o novo homem, o profissional. Na inabalável dedicação à tarefa de saber-se imortal e difundir o nome de Deus, este novo homem organizou toda a sua vida na dependência do trabalho. Desenvolveu uma capacidade produtiva impressionante, que simboliza, como diz Weber, “o espírito do capitalismo”. A recusa ao consumismo, aos prazeres mundanos, e a “pureza” moral através da dedicação ao trabalho, também criou uma particularidade humana sem a qual o capitalismo não poderia existir: a poupança, ou a acumulação do capital. Formava-se, então, o tipo de empresário interessado exclusivamente em aumentar suas posses, o tipo ideal de burguês.

Para a burguesia ascendente a riqueza depende do crescimento da capacidade de trabalhar a terra, do rendimento do trabalho. O trabalho, portanto, com a ascensão da burguesia, passa a se tornar um conceito positivo e, pouco a pouco, a máquina, pela sua capacidade de potencializar o trabalho, vai adquirindo um significado cada vez mais importante.

Como o Renascimento falava de um homem genérico que, conforme advogou Descartes no século XVII, com sua capacidade de penetrar os mistérios da physis poderia descobrir novos usos para a natureza, permaneceu a crença numa divisão natural entre os que pensam e os que fazem, entre os que trabalham com a mente e os que trabalham com as mãos ou com o corpo. Todavia, não foi fácil consagrar essa distinção entre os séculos XVI e XVII até porque muitas das “invenções” desse período foram realizadas por homens comuns como artesãos e camponeses.

A “razão técnica” ganha uma dimensão inimaginável, daí a exaltação da ciência e da técnica em oposição à filosofia especulativa e aos dogmas religiosos. A “razão técnica” está preocupada com o agir com vistas a um fim imediato, com a eficácia. Está ligada à intervenção do homem na natureza, aos processos de trabalho. Todavia, este é um dos campos da ação humana que é constituído também pela relação dos homens entre si, mediatizada por relações simbólicas, intersubjetivas. No entanto, como vivemos numa sociedade marcada pelo produtivismo, a “razão técnica” tornou-se a única razão. Os próprios homens, os trabalhadores, passam a ser levados na conta de objetos, de fatores de produção, de recursos humanos.

Tal “razão técnica” se diz superior porque produz técnicas (inovação tecnológica) mais eficientes para a produção e para o progresso. Vejamos o exemplo da maquinofatura, onde a princípio pode-se justificá-la superior à manufatura por produzir maior quantidade de unidades físicas de mercadoria na mesma unidade de tempo. Todavia, se formos perceber com acuidade, veremos que ela é “superior” no sentido de mais produtiva, porque implica para o capitalista um maior controle:

1) sobre os homens: na manufatura a energia é fundamentalmente dos próprios homens, dependendo dos seus corpos o ritmo do trabalho. Ora, por mais que se queira exigir de um trabalhador, o seu corpo tem um limite psíquico e biológico que constitui um obstáculo efetivo à demanda do capital por ampliar permanentemente a sua produção. Com a maquinofatura o capital se liberta desses limites. Agora é a máquina que faz, ficando o trabalhador subordinado ao ritmo que o capital impõe. Na manufatura o saber fazer estava encarnado no próprio corpo do trabalhador, já na maquinofatura há todo um saber contido na máquina, que cabe ao trabalhador apenas alimentar. O taylorismo, técnica organizacional desenvolvida a partir de finais do século XIX e se generalizará no século XX instituirá a “gerência científica e racional do trabalho” procurando, entre outras coisas, submeter o controle rigoroso do movimento do corpo do trabalhador submetido ao tempo do capital. Assim, se consagram no plano da sociedade lugares que cristalizam a separação entre trabalho intelectual e trabalho braçal. Coroa-se o processo de separação do homem-natureza;

2) sobre a natureza: o deslocamento da fonte da riqueza (que antes se localizava na terra) para a indústria deu um novo sentido à vida. Ora, a capacidade de realizar trabalhos está relacionada ao dispêndio de energia. Com o uso da máquina a vapor o capital conseguiu um controle sobre a energia e assim se “libertou” das imposições dos ciclos da natureza, ficando evidente que o capital não pode ficar na dependência dos tempos da natureza, mas requer, ao contrário, a subordinação a si dessas temporalidades.

Como vemos, não é simplesmente por uma razão técnica que a nossa sociedade se desenvolve tecnologicamente, mesmo porque nenhuma técnica tem em si mesma razão. O motor das mudanças e do desenvolvimento tecnológico, demonstra-o amplamente a história, tem sido fundamentalmente da ordem do político, na medida em se que trata da tentativa de obtenção de um maior controle sobre os trabalhadores e sobre a natureza. Se a técnica assumiu o lugar proeminente que ocupa na nossa sociedade, isso não é uma questão natural, mas decorrência de um processo de muitas tensões e conflitos no qual outros possíveis históricos, acusados de inexeqüíveis ou românticos foram sufocados. Dois séculos de revolução industrial já nos permitem concluir que a técnica é uma condição necessária, mas não suficiente para resolver os problemas com que a humanidade se defronta, competência essa que a razão técnico-científica, também conhecida como razão instrumental pretensiosamente avocou para si.

Como se vê, é preciso que fique claro que a solução dos problemas ambientais não é de natureza técnica, mas de uma opção político-cultural, pois, afinal, a técnica deve servir à sociedade e não esta ficar subordinada a ela.

3.5. A Natureza e Relações Sociais

Na sociedade ocidental, subjacentemente às relações sociais instituídas em meio a tensões, conflitos e lutas, elabora-se, como vimos, um conceito determinado de natureza que fundamentalmente dela desloca o homem. E aí se torna fácil perceber porque o imaginário ocidental costumeiramente associa à natureza os segmentos ou classes sociais oprimidas e exploradas, naturalizando essas condições: as mulheres, por natureza, são frágeis e emotivas...; os povos indígenas são selvagens, sendo da selva, da natureza, são passíveis de dominação e discriminação; os negros são, por natureza, inferiores...; os operários, por natureza, são incapazes de planejar, projetar, pensar...; e assim uma infinidade de outras classificações, que ao olharmos como foram instituídas e consagradas pela cultura ocidental, atualizadas pela sociedade moderna, deduzimos o seu perfil dominante: uma sociedade branca, européia, machista e burguesa.

As contradições dessa ideologia dominante, que torna naturais as suas práticas de dominação, ficam evidentes quando analisamos seu discurso e confrontamos com a práxis construída historicamente. Ocorre que tais práticas não respeitam as diferenças e os modos de vida que caracterizam cada povo-cultura. Já vimos que o tempo abstrato, traduzido em linguagem matemática e assimilado pela física moderna, transformado em tecnologia mecânica da indústria, é uma instituição que se afirma com a quantidade, com o valor de troca, com o mais e não com o melhor. Os tempos de cada ecossistema e de cada homem inserido em uma determinada cultura são, assim, submetidos e subordinados pela roda viva de uma cultura, a ocidental burguesa; o que não quer dizer que não haja no interior dessa própria sociedade-cultura burguesa outras possibilidades, o que é evidente nos próprios conflitos que se dão no seu interior.

A naturalização das relações sociais, em suma, escamoteia o seu caráter de relações instituídas através de lutas e conflitos e que, portanto, nada têm de naturais, a não ser para as classes dominantes que concebem a sua dominação como obra própria da natureza, como se fossem por ela eleitos.

Eis a questão maior que o ecologismo aponta, ainda que de forma diferenciada nos diversos setores que se constituíram movimento: como abordar as diferenças da natureza sem transformá-las em hierarquias? Assim, trata-se de um outro projeto de sociedade; de um outro sentido para o viver; de uma outra cultura que subordine as técnicas aos seus fins e não fique subordinada a elas. Afinal, um outro modo de vida exige um outro modo de produzi-la.


4. Os Novos Paradigmas da Ecologia

Vivemos um momento crítico. Um momento que clama por lucidez, criatividade e imaginação. De todos os lados, à direita e à esquerda, avalia-se que vivemos uma intensa crise no plano econômico, no plano jurídico-político, no plano dos valores e das normas, da arte e da cultura. A ciência, cada vez mais transformada em força produtiva, encontra-se com a necessidade de repensar seus fundamentos epistemológicos e metodológicos, enfim, sua relação com a filosofia.

4.1. A Razão Crítica

Não podemos nos deixar contaminar pelos irracionalismos tão presentes nesse final de século. O conceito clássico de razão deve ser efetivamente revisto. Depois de Marx e Freud, não podemos mais aceitar a idéia de uma Razão soberana, livre de condicionamentos materiais e psíquicos. Depois de Weber, não como ignorar a diferença entre a razão substantiva, capaz de pensar fins e valores, e uma razão instrumental, cuja competência se esgota no ajustamento de meios a fins. Depois de Adorno não é mais possível escamotear o lado repressivo da razão, a serviço de uma astúcia imemorial, de um projeto de dominação da natureza e sobre os homens. Depois de Foucault, não é lícito fechar os olhos no entrelaçamento do saber e do poder. Precisamos de um racionalismo novo, fundado numa nova razão.

É preciso reconhecer: a razão que numa das perspectivas iluministas se pretendia emancipadora fica associada à dominação, quando o Estado que oprime e domina o faz e fala em nome da razão. É compreensível que a rebeldia contra o Estado se transforme em rebeldia contra a razão, a ciência e a técnica. Devemos criar uma nova Razão que, longe de se opor à vida, permita combater as forças que verdadeiramente a asfixiam. Torna-se necessário, portanto, o exercício da razão crítica, como condição do agir crítico e lúcido.

O desenvolvimento da razão não foi e não é linear, pois não está imune ao processo de desenvolvimento histórico que efetivamente o inventa e institui. É contraditório. É por isso que se exige lucidez. Em nome da razão a humanidade pode se libertar, mas quando ela se faz ideologia, em seu nome se oprime e devasta. É preciso distinguir, como Habermas, a razão instrumental – em torno da qual se desenvolve a técnica como mediação homem-natureza – da razão comunicativa, que se desenvolve no plano das normas e cujo terreno é a intersubjetividade. Confundir esses dois planos é uma característica do capitalismo monopolista de Estado (modelo que vivemos no Ocidente) e do capitalismo de Estado monopolista (como se viveu na antiga URSS e se vive na China e em Cuba), uma vez que em ambos tudo se transforma em questão técnica.

A razão técnica e científica não é a razão no seu todo. Uma das conquistas da modernidade é o reconhecimento de que não só a nossa relação com a natureza deve ser regida de modo racional, mas também as relações entre os homens. Sabemos, entretanto, que o imaginário racionalista separou a relação homem-natureza (lugar da relação sujeito-objeto), da relação homem-homem (sujeito-sujeito) e, o pior, tornou-as equivalentes. Em outras palavras, deu à relação homem-homem o mesmo caráter atribuído à relação homem-natureza, instrumentalizando, assim, as relações sociais.

As relações sociais são mediatizadas simbolicamente através das normas, valores e objetivos histórico-culturalmente instituídos e instituintes. Sabemos hoje, principalmente após Freud e alguns antropólogos, que a razão não está separada da “irrazão” por uma muralha da China: o homo sapiens também é homo demens. A vida está povoada de “sem sentidos” sem os quais não teria sentido viver, como o amor, a paixão, a arte etc. Neste campo intersubjetivo, a razão instrumental encontra os seus limites, pois ele é o campo do conflito, da luta; enfim, da política. O fato de esses campos serem confundidos leva a que as normas e valores fiquem subordinados à razão instrumental.

Verifica-se, assim, que a questão ambiental não pode ser reduzida ao campo específico das ciências da natureza e das ciências humanas. Ela convoca diversos campos do saber, pois a quentão ambiental, na verdade, diz respeito ao modo como a sociedade se relaciona com a natureza. Estão aí implicadas, portanto, as relações sociais e as complexas relações entre o mundo físico-químico e o mundo orgânico.

4.2. O Agir Comunicativo

A questão ambiental é, assim, mais que um campo interdisciplinar, pois nela se entrecruzam o conhecimento técnico-científico; as normas e os valores; o estético-cultural, regidos por razões diferenciadas, porém não dicotômicas. Ela requer um campo de comunicação intersubjetiva não viciado e não manipulado para que a região comunicativa possa se dar efetivamente. Enfim, requer, fundamentalmente, democracia. Vemo-nos, assim, lançados no terreno da pólis, da política, ou seja, dos limites que os homens livre e autonomamente se auto-impõem. Qual o uso (correto ou incorreto) que se há de fazer de um determinado ecossistema, por exemplo? O que é verdadeiro ou falso? Essas questões, que aparentemente são abstratas, apresentam-se concretamente no dia-a-dia de cada um de nós e foi em torno desses temas da lei e da justiça que emergiu o logos grego – a idéia do conhecimento racional – a filosofia.

A complexidade da questão ambiental decorre do fato de que ela se inscreve na interface da sociedade com o seu-outro, a natureza. A dificuldade em lidar com ela, nos marcos do pensamento herdado, é evidente: no mundo ocidental, natureza e sociedade são termos que se excluem. As ciências da natureza e as do homem vivem dois mundos à parte e, pior, sem comunicação. Não há como tratar a questão ambiental nesses marcos. Hoje sabemos que essa é uma das formas de se organizar o saber, mas não a única! Nas diversas regiões do conhecimento científico, percebemos a inquietação que se manifesta no questionamento dos seus fundamentos. Mais que a interdisciplinariedade se impõe uma atitude mais radical, sentido de ir à raiz do problema: se impõe a transdisciplinariedade. O primeiro passo é perceber que o paradigma atomístico-individualista não dá conta da complexidade da physis.

A relação da sociedade com o seu-outro, a natureza, deve desenvolver-se através do agir comunicativo que estabelece os fins imaginários, sócio-historicamente instituídos, plano em que a razão técnico-científica não deve dispor de plena autoridade para decidir, pois este é o campo da relação sujeito-sujeito e não da relação sujeito-objeto. A questão nos seus devidos termos é, portanto, indagar o que a sociedade quer fazer com a ciência e a técnica. É preciso que a sociedade se aproprie no sentido forte do termo, isto é, político, da ciência e da técnica, o que não é simples no contexto histórico concreto da sociedade em que vivemos. Que a sociedade rompa de vez com a idéia de que seus problemas serão solucionados meramente pela aplicação de uma determinada técnica, seja ela qual for, pois este é o terreno seguro que leva à tecnocracia. Evitar tal risco exige, portanto, maior lucidez quanto mais graves se tornam os problemas com os quais hoje nos defrontamos, o que demanda uma outra atitude por parte dos técnicos, cientistas, filósofos e teólogos.

É no plano da pólis, isto é, da política que haveremos de instituir condições iguais para que as individualidades floresçam. A autonomia de cada ser humano se desenvolve no seio da sociedade, portanto, todos devem ser igualmente livres para estabelecer as regras, as normas, as leis. Não foi a biologia quem distinguiu homens para pensar, planejar e decidir e homens para fazer. Foi o terreno movediço, tenso e contraditório da história que os instituiu assim. E a história não é o passado. Ela se dá aqui e agora e cabe a cada um de nós decidir nossos destinos.

Fidelis Paixão
Belém - PA, junho de 1988