sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Cidade Invisível e o Encantamento com a Mitologia Brasileira na Netflix

Como um Boto cor-de-rosa, originário das águas doces da Amazônia, aparece morto numa praia carioca? A investigação sobre o acontecimento abre as portas para o realismo fantástico da mitologia brasileira, envolvendo a Cuca, o Curupira, a Iara, o Saci e o próprio Boto, entre outros, num enredo maravilhoso e divertido na nova série nacional da Netflix, Cidade Invisível. 


O que eu mais gostei na série foi a fuga do lugar-comum da luta dicotômica entre o bem e o mal e a capacidade de nos fazer esquecer por algum momento dos mitos nórdicos e nos reencantarmos com os seres fantásticos da brasilidade tropical. Nela, as entidades ou "encantados" são conectadas com fenômenos ou esferas da natureza, como a Iara que é um ser das águas profundas, ou o Curupira que é o protetor da floresta, mas também são produtos e expressam a dor dos dilemas humanos. O bem e o mal são conectados de forma dialética na trama que se inicia com o conflito entre uma grande construtora e uma comunidade rural de remanescente da Mata Atlântica no Rio de Janeiro, avançando para uma relação dialética entre o real e o fantasioso, o natural e o sobrenatural, ao apresentar uma área de invasão urbana onde essas entidades e pessoas pobres e vulneráveis convivem nos arredores da Lapa e de Santa Teresa, no mesmo Rio de janeiro. 

Não sei se a segunda temporada seguirá com o mesmo ritmo na narrativa, mas certamente vale a pena acompanhar a performance do experiente José Dumont, do cada vez mais encantador Marcos Pigosi, da sempre poderosa Alessandra Negrini, do Fábio Lago merecedor de um Oscar como o Curupira, da belíssima Iara, Jéssica Cores e do gracioso Saci, Wesley Guimarães. A história segue a linha narrativa do filme "João e Maria: Caçadores de Bruxas", com a resignificação dos mitos, das lendas e dos folclores, para uma versão adulta mais 'picante', digamos assim, ou mais fiel aos seus propósitos originários, diriam os estudiosos das histórias infantis. 

O fato é que é uma delícia apreciar uma produção tão bem feita, com uma narrativa que aponta a relação entre o avanço da urbanização e da especulação imobiliária que promovem cada vez mais destruição ambiental, com a mortandade dos animais, as queimadas e o destamento, reproduzindo o dilema faustiano do processo civilizatório que quanto mais avança deixa um rastro de destruição e sufocamento da memória, do senso coletivo de solidariedade e da ética do cuidado. 

A série só ficou a dever uma trilha sonora a altura, que assim como resgatou os personagens mágicos, não do nosso folclore, mas da nossa mitologia, como diria Boff, resgate a musicalidade que acompanhou e embalou os sonhos de tantas infâncias no Sítio do Picapau Amarelo, que obviamente não poderia deixar de ser lembrado. Vale a pena assistir. Parabéns Netflix, estou roendo as unhas pela segunda temporada. Parabéns aos cariocas, que se descobriram, tal qual nós aqui da Amazônia, como seres das florestas, mesmo vivendo entre as pedras e os cimentos. 

Fidelis Paixão 

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