sexta-feira, 9 de novembro de 2018

OS POBRES: NÓS SEMPRE OS TEREMOS CONOSCO? Parte II


Quando nos referimos aos pobres estamos utilizando a mesma compreensão que a Bíblia fala sobre o assunto, ou reproduzimos o que aprendemos num evangelho já contaminado com valores mundanos?



A questão dos pobres é um tema central na Bíblia e como cristãos é nosso dever conhecer. A missão da igreja é ministrar aos pobres, pois o Reino de Deus pertence a eles, segundo Jesus afirmou em Lucas 6:20. Quando perguntado se ele era o Cristo que haveria de vir, ele respondeu que o evangelho estava sendo proclamado entre os pobres. E isso era uma prova de que ele era o Cristo. Este texto é continuidade do anterior (clique aqui), quando comecei a discorrer sobre o tema e aqui darei sequência, visando aperfeiçoar aqueles que fazem parte do Corpo de Cristo, para o bom combate.



Compreender esse tema e sua relação com a nossa missão como cristãos e como igreja não é apenas importante, mas é vital, pois esta geração tem experimentado um forte mover de intimidade através do louvor que tem transformado muitas vidas e manifestado a Graça de Deus a todos. Porém, se esta geração se deter nesse mover, corre o risco de ouvir do próprio Deus as palavras ditas através do profeta “Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos, porque não ouvirei as melodias das tuas liras. Antes, corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene” (Amós 5:23-24). Um louvor e uma adoração desconectados de ações que manifestem a justiça, a graça, a misericórdia e o amor de Deus, se tornam inaceitáveis para Ele.



Na primeira década deste século, Beth Wood e Maurício Cunha publicaram um belíssimo livro, infelizmente pouco conhecido no meio evangélico, intitulado “O Reino entre nós: transformação de comunidade pelo evangelho integral” (Editora Ultimato) e o texto abaixo é uma reprodução parafraseada ou literal de trechos do capítulo 2 “O coração de Deus para os pobres”. Vou evitar aspas, mas fica aqui registrada a referência, recomendo a leitura do livro para quem deseja se aprofundar sobre o tema.



A tradução bíblica na língua portuguesa para a palavra “pobre” é bastante limitada. Pois nos escritos originais do hebraico e do grego, pelo menos sete palavras diferentes se referiam ao mesmo tipo de fenômeno, com perspectivas ou características diferentes, por isso é importante conhece-las, para saber exatamente a que se referia o autor bíblico.



No Antigo Testamento os vocábulos “ani”, “ebyon”, “rash”, “micken”, “chelkah”, “raeb” e “dal, foram traduzidos como “pobre”. Vamos compreender a origem e o significado original de cada um deles.



“ani”



A palavra mais comum no Velho Testamento para falar dos pobres é ani, encontrada 80 vezes. Esses são os que sofrem aflições e opressão. São vítimas de forças, decisões externas e circunstâncias injustas. Isaías se referiu a eles em 3:14 “O Senhor entra em juízo contra os anciãos do seu povo e contra os seus príncipes. Vós sois os que consumistes esta vinha; o que roubastes do ani está em vossa casa”. 


Nesta passagem podemos ver não só a vitimização do ani, mas também o juízo de Deus contra aqueles que os oprimem. Deus odeia a injustiça e age contra os opressores, segundo o profeta. Nós temos uma responsabilidade diante Dele, de identificar as raízes da opressão e de promover a justiça.  




“ebyon”



No propósito original de Deus para sua criação, não haveria pobres na terra. Foi o pecado e a desobediência que geraram a pobreza através da escassez e de uma estrutura socioeconômica baseados no acúmulo, na avareza e na exploração de uns sobre os outros.



Mas ao separar um povo para torna-lo referência sobre as demais Nações, Deus lhes apresentou um sistema social que impediria esse tipo de iniquidade no seu meio. Em Levítico 15:4 ele diz “... para que entre ti não haja ebyon; pois o Senhor teu Deus te abençoará abundantemente na terra que te dá por herança, para possuí-la, se apenas ouvires atentamente a voz do Senhor teu  Deus para cuidares em cumprir todos estes mandamentos que hoje te ordeno.”



No entanto, por conhecer o coração pecaminoso do homem, Deus alerta, no versículo 7, sobre a possibilidade da existência de pobres na terra: “Quando entre ti houver algum ebyon de teus irmãos, em alguma das tuas cidades, na tua terra que o Senhor teu Deus te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás a tua mão a teu irmão pobre; antes lhe abrirás de todo a tua mão e lhe emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua necessidade”.



Por fim, nos versículos seguintes, Deus alerta a seu povo, que por causa da desobediência e de não seguirem suas leis, a pobreza se tornaria inevitável, prescrevendo quais seriam as atitudes corretas a serem adotadas diante do fato: “Livremente lhe darás, e não seja maligno o teu coração, quando lho deres, pois por isso te abençoará o Senhor teu Deus em toda a tua obra, e em tudo que empreenderes. Pois nunca deixará de haver ebyon na terra: por isso eu te ordeno: Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre na terra.”



Quando Jesus disse em Mateus 26:11 que sempre haveria pobres na terra, ele estava citando esta passagem e não promovendo um fatalismo a respeito dos pobres. Dentro desta realidade, temos a responsabilidade de guardar os nossos corações sempre abertos para os ebyon de Deus. Originalmente, ebyon é aquele que não consegue viver independente dos outros, por causa de sua necessidade, conforme expressa o profeta: “Levanta o pobre do pó e desde o monturo, exalta o ebyon, para o fazer assentar entre os príncipes, para o fazer herdar o trono da glória...” (I Samuel 2:8).



“rash”



A palavra rash se refere aos pobres por espoliação. Em outras palavras são os que se tornaram pobres porque alguém com mais poder tirou o pouco que tinham.



O melhor exemplo se encontra em numa história contada pelo profeta Natã: “Havia numa cidade dois homens, um rico e outro rash. Tinha o rico ovelhas e gado em grande número; mas o rash não tinha cousa nenhuma, senão uma cordeirinha que comprara e criara, e que em sua casa crescera, junto com seus filhos; comia do seu bocado e do seu copo bebia; dormia nos seus braços, e a tinha com filha. Vindo um viajante visitar o homem rico, não quis ele tomar das suas ovelhas e do gado para dar de comer ao viajante, mas tomou a cordeirinha do rash e a preparou para o homem que lhe havia chegado. Então o furor de Davi se acendeu sobremaneira contra aquele homem, e disse a Natã: Tão certo como vive o Senhor, o homem que fez isso deve ser morto” (II Samuel 12:1-5). 



Deus odeia a injustiça. Ele espera que o povo dEle se coloque ao lado dos injustiçados. Isto vai requer de nós ações radicais na promoção da justiça, ações estas que muitas vezes não estamos acostumados a associar à tarefa da Igreja.



Em nosso meio, encontramos exemplos de rash entre os povos indígenas, comunidades tradicionais e alguns trabalhadores sem-terra, entre outros.



“micken”


A grande maioria que ouvimos falar dos pobres ou da pobreza nas igrejas, é associando-os com a preguiça e a indolência. Porém, não é essa a ênfase dada pela Palavra de Deus. Micken é a única palavra hebraica que faz esse tipo de associação e aparece em Provérbios como um alerta a um tipo de comportamento que não está condizente com os propósitos do Criador: “Um pouco para dormir, um pouco para encruzar os braços em repouso, assim sobrevirá a tua pobreza como um ladrão, e a tua micken como um homem armado” Provérbios 24:34. E esse tipo de comportamento não deve ser utilizado como uma desculpa para fecharmos o nosso coração, Deus não nos deu essa opção.



“dal”


O dal é o pobre frágil. A raiz da palavra nos dá o sentido de algo que está pendurado por um fio, em perigo de cair. Deus sempre fortalece os fracos e vai julgar os que pisam sobre os dal, conforme nos alertou através do profeta Amós: “...portanto, visto que pisais o dal e dele exigis tributo de trigo, não habitareis nas casa de pedras lavradas que tendes edificado; nem bebereis do vinho das vidas desejáveis que tendes plantado” (Amós 5:11).


“raeb”



O raeb é, talvez, o pobre que temos mais facilidade em servir. O raeb é o faminto; o que simplesmente não tem o que comer independente do motivo. A Palavra nos ensina que devemos dar o nosso pão ao raeb: “Sendo, pois, o homem justo e fazendo juízo e justiça, não comendo carne sacrificada nos altos, nem levantando os olhos para os ídolos da casa de Israel, não roubando, dando o seu pão ao raeb” (Ezequiel 18: 5-7).



“chelkah”


Chelkah vem de uma raiz que quer dizer “escuro” ou “infeliz” e se refere ao pobre infeliz ou deprimido na mente. Qual seria o nosso agir com os que não conseguem enfrentar a vida, os que estão de luto, os lidando com doença mental?  Deus é o defensor do chelkah. Ele se revela como Torre Forte na vida deles. Devemos nos juntar aos chelkah, trazendo esperança, força e proteção: “Tu, porém, o tens visto, porque atentas aos trabalhos e à dor, para que os possas tomar em tuas mãos. A ti se entrega o chelkah; tu tens sido o defensor do órfão” (Salmos 10:14).



No Novo Testamento, são poucas as palavras gregas traduzidas como pobre ou necessitado. Em Lucas 21:2-4 encontramos a viúva “pobre” que Jesus apresentou como exemplo de generosidade. É interessante notar que três palavras diferentes são usadas para falar da mesma viúva: “Viu também certa viúva mbuwkah lançar ali duas pequenas moedas; e disse: Verdadeiramente, vos digo que esta viúva ptokos deu mais do que todos. Porque todos estes deram como oferta daquilo que lhes sobrava; esta, porém, da sua husterema deu tudo o que possuía, todo o seu sustento.”



Nessa passagem podemos notar que as três palavras diferentes no grego se referem à mesma pessoa, a viúva, em sua pobreza. Isso nos ajuda a constatar que as palavras gregas não são diferenciadas da mesma forma que as palavras hebraicas. Vamos estudar a palavra mais comum e mais essencial para o nosso entendimento do coração de Deus para os pobres.



“ptokos”



O ptokos é o pobre que, encontrando-se apavorado pelas circunstâncias adversas da vida, procurou um defensor em quem pode confiar e depender, e o achou em Deus. O ptokos se refere ao necessitado que não tem segurança em si mesmo e vive dependendo de outros.



A palavra ptokos se refere primeiro ao fisicamente necessitado e se estende aos necessitados “em espírito”. O ptokos é principalmente o que não tem comida e as outras necessidades básicas supridas.  A este, Jesus foi enviado para proclamar as boas novas do evangelho que promete transformar as suas vidas em todos os níveis, levando-os ao Reino de Deus.  São estes os bem-aventurados; não porque a pobreza faz parte do plano de Deus, mas porque podem se posicionar na completa dependência de Deus, o que certamente é o melhor lugar no mundo.  São esses “escondidos” em Deus que têm a oportunidade de entender o Reino de Deus mais profundamente e então servir de exemplo para nós. São esses que providenciarão encontros com Jesus nas nossas vidas.



Lemos em Mateus 5:3: “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus”. Aí encontramos os “ptokos em espírito”. Com a nossa definição é mais fácil entender essa expressão. Existe a possibilidade de alguns que têm conseguido suprir suas necessidades básicas pela própria força, entrar neste relacionamento de dependência em Deus. É mais difícil, mas é possível. É mais difícil, porque o homem sempre tende à auto-suficiência, a depender da sua própria força, da sua inteligência, da sabedoria humana. É possível, porque Deus oferece ao rico esta possibilidade de entender que ao final ele necessita de Deus para tudo. O pobre, que olhando para a sua situação já percebe sua necessidade, tem mais facilidade de entrar no Reino de Deus. O homem que “tem tudo” em termos do mundo sempre terá mais dificuldade em seguir a Jesus, não porque o convite estendido a ele é diferente, mas porque o coração do homem é enganoso e tão facilmente nos leva a acreditar que podemos viver na nossa própria força.



Finalizo esse texto ressaltando a necessidade e urgência de compreendermos a questão do pobre na Bíblia e esse estudo linguístico realizado por Bete Wood e Mauricio Cunha nos possibilitou ampliar largamente a compreensão sobre o tema. Numa próxima oportunidade espero refletir a justiça de Deus e seus reflexos na vida cristã.




Belém – PA, 09 de novembro de 2018

Fidelis Paixão – advogado, educador, pastor

fidelispaixao.blogspot.com

Nenhum comentário: